quinta-feira, 1 de maio de 2014

ORIPIAS

 -Ma questo non è il Brasile, dobbiamo dimenticare la nostra vita in Sicilia! Com essa afirmação, exclamada em tom colérico o" Nostro Padre", tratamento de respeito e temor dispensado ao chefe daquela família siciliana, queria deixar bem claro sua disposição e sua imposição de que ele e todos os seus esquecessem a vida deixada na grande ilha, situada bem à frente do bico da bota da península itálica e abraçassem aqui como "la nostra terra poi"; uma vez que comentar a vida que lá ficou seria temeroso, posto que "nemici compaiono dappertutto" ou melhor expressando em outra forma : "cuidado, podemos ter sido seguidos"!... Tendo recebido de maneira ilícita os documentos e passaportes para ele e os demais, escapando com os mesmos num voo às pressas por sobre o oceano atlântico, decidira e naquele clã sua decisão era lei, radicar-se na ex-Terra de Santa Cruz.
 A história daquela família era regada a muito vinho, macarronada festas nababescas, viagens e todo o objeto do desejo dos sonhos mais fúteis que os euros sujos podiam pagar. Nostro Padre herdara de seu tio, que herdara de seu irmão mais velho e assim, numa sucessão hereditária do poder paralelo, o comando do crime organizado de uma região importante da Sicília. Com o aperto policial para o qual a propina já não era suficiente; as autoridades queriam ao menos a cabeça de alguém para justificarem as investigações,ou no mínimo a aparência das mesmas, enquanto o acordo mórbido entre o crime de farda e o crime de black tie se beneficiassem sordidamente; aquele grupo de parentes tivera que abandonar o lar além mar às pressas, antes que o cerco se fechasse inapelavelmente. Mormente ele haver alcançado a façanha de trazer os componentes mais próximos de sua casta ou seja a sua esposa, o seu pai, a mãe da esposa, o filho, a filha, o irmão e a cunhada  num total de cinco parentes daquela genealogia, conseguira aqui na "Pátria do Cruzeiro", se esconder, tendo juntado numa mala uma quantidade de euros suficiente para refazer a vida onde quer que fosse e em grande estilo. Sendo mais numerosa, outra parte daquela etnia escapara para o extremo norte da terra de Dante Alighieri, outros para a Espanha, Inglaterra e França, prometendo juntarem-se novamente quando os seus crimes caíssem no esquecimento.
 A estrada era longa e tortuosa mas conseguiram chegar enfim à uma residência de construção antiga em que morariam com os nomes trocados, na clandestinidade pois como já se sabia, além do governo italiano estar à caça deles, inimigos, rivais impiedosos do crime também queriam-lhes as cabeças, rivais esses, animados por vinditas de morte, alimentados pelo ódio oriundo do extermínio entre entes familiares, nos embates disputados em campos dos negócios fora da lei. A casa, uma antiga residência de um barão do café, era uma verdadeira mansão com vinte quartos. Em se aproximando da frente da casa o filho do "poderoso chefão", ao olhar a entrada exclamou:
 -Questo casa mi gela!
 -Irmão, eu agora só falo em português. Ou você esqueceu do que aprendeu no nosso intercâmbio?    Nostro Padre exige que esqueçamos il nostra lingua e falemos só o idioma daqui disse a filha do chefe.
 -Cê ta falannndo italiáááno taméém, attenzione,disse o irmão, e Nostro Padre non fala dereito anche!
 -Quieto que ele ta perto... disse a moça, eu errei, não é nada fácil, então imagina pra ele que não estudou como nós? Ele ta se esforçando mas é difícil. Nós é que temos obrigação pelo que ele pagou! Attenzione, vou te ajudar, não é questo casa mi gela é esta casa me arrepia.
 -Vá bene ou tá bom é me oripias, disse ele.
 -Donde você tirou esse S?
 -Non sei, lembrei que muito nome braziliano que tem S. Disse ele, no que ela retrucou:
 -A palavra ta errada, não é oripias é arrepia!
 O pai interrompeu a discussão, exigindo que eles praticassem com ele e com todos a língua do novo país. Mesmo assim, o filho pensava "mi gela", falava arrepia mas de sua boca saia oripias e ele nem sabe como tinha cismado com esse S no final da palavra.
  De fato a mansão era de arrepiar e para ajudar, o dia estava nublado, cumulusnimbus tornavam o horizonte negro e de mau presságio. Entraram na casa e estava tudo como combinado: casa limpa, cortinas e roupas novas, vasos de flores viçosas, tudo a contento. O rapaz repetiu: -pensar em passá noite qüi mi oripias!
 -Parla correto, êh? Disse o pai. O rapaz pensou em retrucar, alegando que ele sabia menos que eles o português, como iria cobrar que falassem direito? A irmã, conhecendo o irmão como ninguém, interrompeu:
 -Quieto...quer que ele dê castigo? Realmente ninguém questionava aquele genitor, mesmo que ele estivesse errado.
 O pai fez questão de que todos saíssem novamente juntos para a imobiliária, a fim de fazer os últimos acertos, pois temia que estivesse longe se os inimigos ferozes se aproximassem, porquanto como se sabe, ele era muito odiado. Com tudo acertado, voltando da imobiliária, foram seguidos por um sedã negro, o motorista dos sicilianos acelerou , o perseguidor emparelhou e sem nem tempo para reação do Nostro Padre, os vidros do carro estranho baixaram e dois canos metálicos surgiram cuspindo projéteis de metralhadoras. A limousine alugada na qual estava a família transformou-se numa verdadeira peneira, o motorista da mesma jogou o automóvel alvejado no enorme rio que ladeava a estrada. Instantes depois a família já estava à beira do lago enquanto o auto em que tinham estado, afundava.
 -Stanno tutti bene?Todos responderam que sim, que estavam todos bem.
 -E o motorista? Gritou a filha.
 -Lasciarlo morire, non fa parte della famiglia.
 -Se não faz parte da família, pode morrer? Disse a filha com lágrimas nos olhos, no que o pai respondeu com olhar feroz e ela se calou.
 O tio olhou para cima do barranco de onde o carro havia caído. Dois homens com metralhadoras em punho mais um terceiro com ares de chefe, como que procuravam por eles, então o tio quase gritou apavoradamente :
-Ora lasciar morire! A moça retrucou ao tio fazendo gestos para que ele se acalmasse:
-Nós não vamos morrer... fala baixo e olhe, eles nos procuram mas não estão nos encontrando. Deve ser essa tarde nebulosa. Todos agacharam enquanto os homens desistiram, entraram no seu carro e partiram.
A família voltou para a mansão a pé, discutindo como fariam para se evadir dali, já que haviam sido descobertos. Na moradia, enquanto os mais velhos decidiam na biblioteca o que fazer, o rapaz percebeu uma estranha presença no salão e foi até lá, nem percebendo que sua irmã o seguia. Um homem no meio do salão meditava e antes de ser interpelado, já saia da casa. O rapaz o seguiu pela rua com sua irmã bem à retaguarda. Numa vivenda ao lado, o homem entrou e o filho de Nostro Padre foi até o portal envidraçado da entrada daquela casa que permitia visualizar tudo lá dentro. O homem então sentou-se num lugar que parecia guardado para ele, fechando um círculo de pessoas que como que meditavam. Ele meditou com elas e logo, todos começaram a fazer o Pai Nosso. Quando terminaram, o rapaz começou a sentir uma espécie de força magnética puxando-o para junto daquelas pessoas e enquanto resistia, ele ouviu de um deles:
-Não resista, aceite sua condição, você precisa de ajuda. Você precisa entender o que realmente aconteceu com você e com todos os seus! Nisso, ele prorrompeu em pranto gritando não, não, não e saiu correndo dali pra junto da família. Encontrando a irmã pelo caminho ela o segurou pelos ombros e disse:
-Calma irmão, depois que os assassinos se foram sem nos ver, eu entendi que não era nenhum nevoeiro que nos escondeu. Os nossos corpos e os de nossa família afundaram naquela limousine junto com o motorista.
-Questo è pazzo, siamo vivi, vediamo! Disse o rapaz apavorado, no que a irmã respondeu:
-Não é loucura e estamos vivos sim, esta é a verdadeira vida, a vida em espírito, somos almas imortais. Você não quis, durante nosso intercâmbio, frequentar aquela casa espírita onde eu ia senão teria aprendido. Olhe para você irmão, não se sente diferente? Realmente ele se sentia diferente e também fora confusa a maneira como haviam saído do carro tão rápido e sem ferimentos. O irmão gritou:
-Nossa famíglia! Ele saiu correndo em direção à mansão e a irmã o seguia. O rapaz já misturava língua italiana com língua portuguesa, estava completamente desnorteado. Quando entraram em casa, seus pais, seu avós e seus tios se debatiam contra seres obscuros que os arrastavam, o rapaz investiu contra eles mas a menina o impediu:
-Não adianta irmão, os nossos não estão na nossa mesma sintonia portanto o arrastamento inferior será inevitável! Confiemos em Jesus e na Providência Divina!
 Uma força que ele não compreendia o levou a ele e a sua irmã até aquela casa onde aquele grupo de pessoas oravam:
-Sede bem vindos irmãos, disse o homem que antes entrara na mansão, já não era sem tempo, eu estive em sua última moradia, orei muito mas as dívidas de consciência do restante de sua família eram tão grandes que por agora, só podemos pedir ao Cristo por eles e esperar que o sofrimento traga o arrependimento para poderem ser resgatados. Por ora estão entregues a antigos inimigos. A Lei é assim: quem deve, paga. Ninguém zomba das diretrizes divinas. Mas vocês estão prontos. Um torpor os envolverá e vocês irão para uma belíssima colônia de tratamento. Depois de fortalecidos, poderão aprender a ajudá-los. O rapaz foi atraído para um dos participantes daquela assembleia, e através da boca desse, iniciou uma comunicação  em italiano no que o dirigente do grupo disse:
 -A linguagem do espírito é o pensamento. Projete as tuas questões e o médium nos transmitirá em português, uma vez que ninguém aqui fala italiano. O médium, então transmitiu, aquilo que o espírito do rapaz projetava:
  -Porque eu não fui arrastado como os meus parentes?
  -Lembre-se: algumas vezes você acompanhou sua irmã em tarefas beneméritas e os espíritos iluminados, protetores de quem você ajudou, mesmo que você não consiga vê-los, estão aqui, patrocinando a tua proteção e atendimento. O acesso à paz na espiritualidade quando perdemos o corpo físico, esta inteiramente ligado ao que trazemos no coração. Se nossa bagagem é o amor incondicional, receberemos o amor daqueles que chegaram ao mundo espiritual antes de nós e também os pensamentos de gratidão daqueles que continuam na terra. Agora, se o que trazemos no íntimo é a revolta, a mágoa, a incompreensão, encontraremos nossos iguais em paisagens desoladoras de tenebroso desespero.
 -Como foi tão rápido isso tudo? Nós morremos, saímos daquele carro, de dentro do rio e nem sabíamos que tínhamos morrido? Disse o espírito do sicilianinho.
 -Em primeiro lugar ninguém morre, respondeu o doutrinador, somos espíritos vestidos de um corpo de carne para finalidades de evolução e em segundo lugar, o tempo e o espaço do espírito é relativo e nenhum desencarne é igual ao outro. A chacina que dizimou os corpos de você e de sua família foi amplamente noticiado, principalmente pelo sensacionalismo. Não só vocês foram caçados, todos os seus parentes, mesmo aqueles que fugiram pela Europa, foram encontrados e tiveram seus corpos eliminados. A escalada de ódio só encontra limite no perdão. E além de tudo, entre aquele crime do qual vocês foram vítimas, e o dia de hoje já se passou um ano. Só estamos aqui em socorro aos proprietários daquela mansão porque desde que vocês foram para lá eles não conseguem nem alugá-la nem vendê-la para mais ninguém. Vocês agiam como assombrações daquela casa. Só para terminar, mesmo que o motorista tenha vivido com vocês apenas o momento de uma viagem de automóvel, ele tinha ligações pretéritas com todos e precisava daquele gênero de morte para corrigir um crime hediondo de outra vida, onde ele afogava pessoas. Esse motorista foi resgatado automaticamente e também está patrocinando o resgate de vocês por que ele tem muita luz. Por vezes, espíritos luminares animam corpos das pessoas mais simples e inexpressivas ante os quadros sociais e efêmeros da terra, para poderem aparar arestas que incomodam voos mais altos no seu quadro evolutivo. Ele e outros espíritos protetores têm tentado esse ano todo protegê-los daqueles espectros sombrios que levaram sua família mas enfim, tiveram que permitir que aquilo acontecesse por não conseguirem dos seus parentes, em todo esse tempo, uma prece, um pensamento em Deus, um esquecimento da mágoa, um resquício de arrependimento. A mansão em que estavam, por esse período, funcionou como zona de proteção, até que os apelos daqueles inimigos tiveram que ser aceitos, porquanto seus afins não conseguiram força que os advogasse por não se encontrar neles um eco que os auxilia-se ao bem, uma vez que os seus pensamentos enfermiços criaram campos magnéticos de sombras intransponíveis. A cada qual segundo suas obras, tal é a lei!
 -Irmã, disse o espírito do rapaz através do médium, você sabia disso?
 -Sim irmão, disse a sicilianinha; no que os que não tinham vidência ali, só entendiam a comunicação pelo  médium. Não acompanhavam a resposta da irmã.
 Aquele espírito feminino então narrou que foi orientada pelos bons espíritos, por um período relativamente longo em que todos estiveram na mansão. Ia e voltava da espiritualidade para com calma, ir preparando principalmente o espírito do irmão, evitando assim um choque que seria muito prejudicial.

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 A garota encontrara ali  na colônia espiritual, o primeiro namorado que havia desencarnado anos antes acometido de meningite meningocócica. Eles nunca haviam se esquecido, tanto que ela não namorara mais ninguém. Logo pediram aos ministros da colônia para retornarem a terra numa nova vida. O pedido foi concedido e eles, em pouco tempo, retornaram ao globo terrestre em novas famílias, em novos corpos, com o plano traçado de se encontrarem na maturidade e casarem-se. O irmão dela ficaria mais tempo na colônia para retornar como o filho primogênito daquela que antes sua irmã, doravante seria sua mãe. Todo o restante da família, sendo resgatado das trevas aos poucos, comporiam o clã como filhos numa grande prole e esses futuros filhos, seriam também ajudados por outros espíritos de luz que encarnariam e se tornariam órfãos, para serem adotados por aquele casal amoroso, compondo então o: "Casarão do Amor", obra assistencial planejada na colônia e que aconteceria pelas mãos daquele par de luz e pela colaboração de amigos encarnados e desencarnados.
 O sicilianinho, ao reencarnar, tinha na memória uma expressão que ficou gravada em uma palavra, de maneira que visitando sua futura mãe em sonho, a soprou. Ela memorizou aquela expressão e mesmo sem lembrar porque, batizou seu primeiro filho com um nome curioso: Oripias.

Expressões em italiano colhidas do Google Tradutor.

terça-feira, 18 de março de 2014

OIRGIA

 Com Amanda não havia meio termo. Tudo tinha que ser como ela queria. Autoritária, mandona ( seu nome já dizia tudo) a soberana do seu clã. É que o fato de ela ter raciocínio rápido, ser ambidestra, ter uma visão privilegiada ou seja, com um alcance visual frontal e periférico melhor que os demais; tinha 60 anos e enxergava melhor que um jovem de visão perfeita; tudo isso havia feito dela uma espécie de cultuadora de si mesma. É que além de todos esses atributos, sua beleza física era invejável, porquanto sua inteligência acima da média era aproveitada por ela em muitos sentidos, inclusive no cuidado com a saúde e a plástica de sua pele na qual ela aplicava produtos salutares oriundos de suas pesquisas, haja visto que era química, com phd em cosmética.  Apesar do excelente cuidado com a higiene corporal e bucal(até aquela idade não tinha uma cárie) com dentes perfeitos e alvos como o marfim, da boca bem delineada e carnuda, dos olhos ligeiramente puxados sugerindo o resultado de uma linda miscigenação, a voz aveludada embora austera, o nariz arrebitado e bem feito, ela era sozinha. Não é que não gostasse de homens mas nenhum a aguentava por muito tempo. Sua mãe, seu pai, sua irmã e sobrinhos, pois o cunhado de Amanda e pai deles também não a suportava e embora pagasse a pensão das crianças religiosamente, só via os filhos com a permissão dela. É claro que um pai, dentro da lei, consegue tranquilamente o direito de ver a sua prole, mas como ele era de boa paz e ela era muito ardilosa, o genitor dos sobrinhos de Amanda frequentemente era surpreendido por um subterfúgio, uma estratégia para bular esse direito. Mas a vida não é assim como novela mexicana na qual o vilão é essencialmente cruel sem nenhum resquício de bondade, e o herói é tão bom, que abraça o bandido enquanto este tenta matá-lo, ela não era de toda má. Tinha lá seus lampejos de bondade aqui e ali. Nas questões conforto, acompanhamento médico, instrução, laser, boa alimentação e outros requisitos e dessa maneira, os cuidados com a família eram levados muita a sério por ela.
 Amanda trabalhava em casa e com a facilidade da internet e outros tantos recursos que o dinheiro com conhecimento consegue utilizar, construíra um pequeno império. Aquela vivenda, uma verdadeira mansão que tinha espaço para tudo, inclusive para o seu laboratório particular, ela, que era detalhista e cuidadosa e conduzia seu negócio com todo o cuidado, pagava seus funcionários com melhores salários que os de outros laboratórios mas era exigente ao máximo. Se algum erro fosse detectado, cabeças rolavam literalmente pois ela não admita desculpas, demitia sumariamente.Se ele questionasse seus direitos, ela mandava procurá-los. Preferia perder contendas judiciais do que admitir um incompetente em sua empresa.
- Menino 507: checaste a entrega da matéria prima? O tratamento dela com os subalternos era impessoal, os tratava por números, não admitia intimidades.
- Sim senhora!(Ela não aceitava outro tratamento. Se portava como um general de saias).
- Vou averiguar pessoalmente...
- Menina 425: calculaste a proporção das essências?
- Bem senhora, cada essência...
- Perguntei uma coisa, não me responda duas! Ainda não aprendeu que só me respondem o que pergunto?Se houver naquelas proporções algum erro, antes mesmo que consigas emitir duas sílabas: per-dão, já estará na rua! Acene com a cabeça se entendeu. E era assim, uma dama linha dura, tal qual a Miranda de " O diabo veste Prada".
 Naquele dia, o fornecimento de glicerina chegara pontualmente às 14:00. Bem no horário combinado e se fosse de outra maneira, se atrasa-se um minuto, ela mandava voltar. O motorista nem descera do caminhão, já conhecia a peça, ou seja, aquela "rainha de copas". O carregador, tremendo, não podia perder aquele emprego de jeito nenhum! Sua esposa estava para dar a luz e desempregado, o senhorio não teria piedade, o despejaria. O pobre homem já tinha sido informado sobre a fama da "Bruxamanda", apelido que ela nem sonhava conhecer, porquanto em ela pagando os fornecedores à vista, nunca faturava os produtos, as empresas preferiam demitir qualquer funcionário que ela indicasse a perdê-la como cliente, pois se não fizessem o que ela queria, o rompimento do contrato era iminente. Pois bem, o carregador depositou o produto com o maior cuidado e com o rabo dos olhos, nem ousando encará-la frontalmente, atentava para cada movimento, cada palavra emitida por ela, rezando para que ele não fizesse nada que ela reprovasse e concentrando a atenção a qualquer palavra, qualquer fonema que ele acataria como ordem inquestionável. Foi quando o "Senhor 89" disse, até para fazer média com a patroa, quase se dando muito mal: -Que bom! com essa glicerina, daqui a pouco, poderei dar início à primeira fase da manipulação! No que Amanda retrucou:
 -Daqui a pouco? Poderei? Na minha empresa o daqui a pouco é agora e o poderei não existe, é pode ou ruuuaaa! Entendeu senhor 89? Por isso eu digo e repito: Não tem nada inteligente pra dizer? Calado, calada, calados, entenderam? Ou falem quando eu perguntar e só, quando eu perguntar mas por favor, eu quero repostas certas. Pago muito bem a todos para isso. Óóóó - e quando ela dizia óóó, todos ficavam com as orelhas em pé e de olhos pregados nela) daqui a pouco não! Óóóó ir já, imediatamente dar início à manipulação! Nesse mesmo instante, o carregador assustado e atento registrou ou melhor, gravou com tanta intensidade a expressão de Amanda "óóó ir já", que dias depois, indo registrar o nome de sua filha que acabara de nascer, quase que involuntariamente, mandou colocar no documento de sua primogênita um diferente nome: Oirgia.
  

  



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

VILGOLVINA

 Ali, na Cidade Futebola, o futebol era o assunto mais vivido, comentado e assimilado enfim. Também o nome fora idealizado por Oreco e esse era na verdade o apelido do fundador da cidade que, filho de italianos loucos por futebol, escorregando na língua "portuliana", inventaram a palavra "futebola". Seu nome era Roberto Pavão, sobrenome esse que era italiano e que nem ele comentava ao certo, contudo era o resultado do erro de um escrivão bêbado. Informação pouco valiosa num lugar em que todos se tratavam por apelidos. Oreco, que era naturalmente o prefeito, cuja prefeitura localizava-se na Vila dos Encostos, sim, porque além do futebol, outro assunto bastante abordado era sobre assombrações, encostos ou coisas do gênero. Tinha até o Jabá Fera, um baiano que a arrancava todo o apoio das suas cadeiras dizendo: -"Oxênte! Di incossto num quero nem o nome! Em casa nem incossto nass cadera eu dexo! Ranco tudo messmo!".
 Fazia alguns anos, um jogador havia feito história naquele lugar. Cabeceava tão bem quanto matava a bola no peito, no pé, na coxa, corria como foca com a bola parada na testa; pela esquerda chutava forte de direita; pela direita tinha um chute canhoto muito potente; centro avante, tanto distribuía as jogadas como fazia gols e sem mentira nenhuma, em cinco anos já tinha feito 487 gols, quase cem gols por ano! É, mas tudo o que é bom dura pouco e o "Só Gol", esse era o apelido dele, já tinha ido dessa para melhor, pois num festival de domingo, com uma incrível fome de bola, jogara desde a manhã até o princípio da noite sem parar nem para comer, teve um colapso e: "adios bambino". Todo os planos praticamente concluídos para a ida para o Barcelona foram frustrados. Comentava-se então à boca miúda, que aquela alma de jogador, depois da; an han; deixa eu fazer o sinal da cruz amém; passagem pro céu ou não sei pra onde, já fizera um milagre aqui, outro ali, milagres, é claro, relacionados a resultados de partidas de futebol. Mas peraí, e se duas pessoas pedissem ao ah,ah: "São Só Gol"" para que seu time ganhasse, os times fossem adversários, o jogo se desse entre eles e um dos dois saísse o vitorioso, o que diziam? Bom, diziam que um dos torcedores rezou mais rápido que o outro. Mas e se empatassem? Bem, ai diziam que o "Santo" era tão bom, que queria agradar a todos. Ora, mas isso é conversa de beato à toa, portanto vamos parar com essas pilhérias e voltar ao que interessa. Preciso explicar o porque do apelido Oreco, então veja bem: esse cidadão que era pura tiração de sarro, inclusive fez alguns discípulos, embora existissem muitos outros na cidade com a mesma arte para a comédia de gente a toa, sabem, essa habilidade de procurar em qualquer brecha um motivo para se zombar de alguém? Devo até lembrar que eu, eu mesmo, sou bastante distraído e quando escorrego num verbo ambíguo meu irmão mais velho logo vem com um: Ahn han, ahn han, seguido de uma observação maliciosa e ... mas quem quer saber de mim ou do meu irmão? Você quer saber é da história, pois é, o Oreco adorava Alvarenga e Ranchinho e principalmente a música "Mister Eco" que ele  não parava de cantar; foi ai que um bêbado velho e desdentado que estava no "Bar do Escorrega Lá vai Um" disse assim: -"O quê? Sussu ssseu noomi ééé Oréco?'' Pronto, o apelido nunca mais saiu dele.
 Oreco era tão fanático por futebol que conseguira, no ato da fundação da cidade, criar uma lei priorizando esse esporte, na maneira de tombar uma grande área para campos de jogo. A várzea era ali um universo festivo sem qualquer pretensão profissional, mesmo porque ali, apesar das brincadeiras, trabalhava-se muito.
Imagine você, que em  Futebola e especificamente na Vila dos Encostos, diversas empresas trabalhavam na produção de equipamentos e artefatos para futebol, que eram testados nos campos amadores dali e ganhavam qualidade e respaldo de padrão FIFA. Bolas, caneleiras, meiões, chuteiras, uniformes, redes e até apitos de juiz; pelo amor de Deus, quando deixavam a criançada testar alguns, era uma apitaiada ensurdecedora; todo e qualquer equipamento esportivo, mas só para futebol, ali se produzia, sem falar dos craques que ali eram descobertos por olheiros, onde preciosos talentos, não tão habilidosos quanto o Só Gol, mas nem que por isso tivessem pouca intimidade com a bola, eram levados para os grandes times profissionais, inclusive os da Europa. Dez campos de futebol, numa enorme área tombada pela prefeitura, alimentavam os lazeres futebolísticos do lugar, regados a muita cerveja e churrasco.
 Havia também o irmão do "Só Gol" que também jogava por ali. Só que não era nem sombra do mano craque. Para você ter uma ideia, uma vez de frente pro gol, era só chutar e fazer! Pois ele aparou a bola com a mão para chutar! Quando seu time gritou:"Mão não!"Ele respondeu:"Por que não?"E assim era o "Nem Gol". Não dava para ter outro apelido. Mas ele era tão bonzinho, cortês, educado, cavalheiro, uma santa, quero dizer santo pois não era gay. É o que diziam. Ele era boa pessoa mas, como se diz: "Minha vozinha é tão boa mas não joga nada". O fato é que ele adorava futebol e queria jogar de qualquer jeito. Em memória ao falecido; por favor tire seu boné, sua toca ou chapéu em respeito; seu irmão, ele sempre jogava. Só que ele não sabia regra,  não cabeceava, chutava torto, caia à toa, no gol era um desastre, na linha atrapalhava o time, até que o técnico falou com bondade: Não dá pra você fazer outra coisa? Foi ai que eles o utilizaram como faz tudo: gandula, roupeiro, amaciador de chuteiras...Num certo jogo, o juiz estava chorando. Estavam xingando demais a mãe dele. Nem Gol foi em casa, vestiu as roupas da mãe, se maquiou, calçou saltos, escreveu num cartaz, dependurou no peito as letras grandes e foi desfilando ao redor do campo com esse escrito: "Mãe do juiz". Tudo virou o maior sarro mas pararam de xingar a mãe do juiz.
 Num dado domingo ventava demais, mas o futebol. não podia parar. Os "sem calção" e os "venta suja", espera, eu explico, que ansiedade ô! Uma vez, um jogo, o time Parreira de Uva que tinha sido montado pelo seu "Tiro de Sal" um fazendeiro vinicultor, chegou na hora do jogo com a metade da quantidade de calções; distração do roupeiro que era meio distraído; o time adversário ofereceu os de seu uniforme, tinha de sobra, mas a rivalidade era tanta e só para não dar gosto, metade daquele time jogou de cuecas, acreditem! Já o Futebola; esse levava o nome da cidade; jogando num dia de muito frio, estava com o time gripado que corria um pouco, assoava o nariz na mão e abanava para o ranho cair na grama, quando não limpava no próprio uniforme. Dai não é preciso imaginação para saber o apelido "venta suja". Mas, como eu dizia, o vento era tão forte que as árvores dançavam, os jogadores firmavam o pé para que não perdessem o equilíbrio, então aconteceu: o goleiro do venta suja fez uma defesa espetacular, agarrando um tiro do centro avante dos sem calção e embora a ventania soprasse muito contra a sua meta, esse arqueiro então, segurando a bola com as duas mãos soltou-a e sem que ela caísse na área, deu um chute daqueles em que o corpo é arcado, o pé esquerdo sai do chão e como que numa espécie de bicicleta pra frente,chuta com vontade e foi o que ele fez, bateu com o peito do pé direito na redonda, na intenção nervosa de coloca-la em jogo lá no ataque. Bem, coisas incríveis acontecem e essa bola subiu, a força do vento a foi rodopiando lá no alto e esse mesmo vento a trouxe de volta veloz para o centro do gol de onde fora chutada.Goooolll!!! Com muita gargalhada!
 Oreco, além de cuidar da prefeitura, não perdia a oportunidade de narrar uma partida importante pois adorava discursos e fazia questão de narrar às vezes, já que por obrigações tantas e pela idade, não jogava mais, a não ser no festival anual dos veteranos. Acontece que sua filha caçula acabara de nascer, fato raro para um homem daquela idade e ele, como eu já disse, fanático por futebol, trocara o gosto de registrar o nascimento no cartório para narrar aquele jogo. Oreco então, pelo celular conversava com o irmão:
 -Que nome você vai dar pra sua filha, Oreco? Já estou no cartório.
 -O nome é..... e o o celular falhava.
 -Fala Oreco, que nome você quer?
 -A.....e falhou de novo. Nesse ínterim, Oreco viu aquele gol feito pelo vento e começou a gritar entusiasmado:
 -Nossa, que gol! Eu vi, eu vi. Se eu contar ninguém acredita! Você viu Zóio Gordo? Disse falando pro amigo comentarista ao lado.Nesse momento o celular que ele não desligara, sintonizou na hora exata:
 -Viu u gol?
 -Vi na... hora, respondeu Zóio Gordo, mas quando o mesmo disse "hora", o celular falhou de novo.
 O irmão de Oreco que já estava de saco cheio por não ter ido ver os sem calção jogar, seu time do coração, juntou tudo e pensando que era a resposta esperada, ditou o nome ao escrivão. Foi então que o fanatismo futebolístico unido à má vontade de um irmão que se julgara injustiçado, geraram um nome exótico à mais nova futebolense: Vilgolvina.

     

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

SENHORINHA

  Tonico estava furioso.Não aguentava mais ser chamado de anãozinho, mas ele era anão,com altura de 1,20 cm no máximo. Renegava seu nome sim, dizia que se chamava Antônio pois: -"Onde já se viu? Tonico é nome de anão"! É, ele não se conformava. A primavera sergipana na gostosa cidade de Itabaianinha, que apesar das flores perfumadas, das arvores frutíferas cujo cheiro doce inebriava as ruas,da brisa refrescante a atenuar o calor, dos dias com céu de um azul límpido e das noites adornadas com coruscantes estrelas a salpicarem na abóboda celeste, seu humor não mudava:
  -Itabaianinha! Isso lá é nome de lugar? Vô juntá dinheiro e ir pra Itabaiana, que tem pelo menos nome de cidade e não esse nome de lugar pequeno e além do mais, aqui tem muito anão! Quero também casá com mulher que tem tamanho de gente.
  Ele realmente não se assumia. Se enxergava com 1,70 cm. Queria ser grande. Seu apelido era zangado é, o mesmo dos sete anões, mas ai de quem o chama-se assim:
  -Olha, eu só não te chingo do que você merece porque se meus pais não me deram tamanho, pelo menos educação eles me deram. Agora, soco que vem de baixo pra acima acerta com mais força, qué vê?
  Ninguém queria. Por incrível que pareça, o que faltava em estatura sobrava em bravura. Ele podia até apanhar um pouco no começo da briga mas era tão forte que quando acertava um murro, derrubava, pegasse onde pegasse. Acertando na perna, o desafiante não ficava mais em pé, no braço, o mesmo rolava de dor, na cara ou na cabeça o homem apagava sim, ia a nocaute, agora, se o golpe pegasse lá... lá mesmo onde você está pensando, huuuu..... nem se fala! BB, este apelido ele gostava por que ele era o bom de briga, mas pelas costas diziam: "BB é baixinho brabo".
  Naquele princípio de noite, um acontecimento mudaria a vida de Tonico para sempre. Ele fechava sua oficina de marcenaria sozinho- pois seu ajudante precisara sair mais cedo- e se preparava para ir para casa, sem nem sequer desconfiar que três homens o aguardavam na esquina, movidos é claro, por más intenções. Cientes da fama de brigador de Tonico, quiseram tirar isso a limpo, afinal, eles eram os valentões de Itabaiana e as histórias do anão bom de briga tinham chegado pelas bandas de lá. Os três tiveram a pachorra de sair de Itabaiana, passar por Lagarto, depois sul de Simão Dias, por Tobias Barreto até chegar a Itabaianinha, comentando entre si:
  -Pode não! Anão, sem tamanho nenhum, bater mais forte que a gente? Vamos acabar com essa fama! E lá estavam e ali começaram:
  -E ai, fiote de mico mais grilo, tamanho menor que cria de esquilo!Ah ah ah ah ah! Queremos ver se tu é bom mesmo, mas só se bater em nós três, quero ver. Não viemos com arma não, pra ver se tú é mesmo valentão, valentão? Só se for valentinho, bem piquinininho, qui dó! Ah ah ah ah ah!
   É... Só que você que esta me dando a honra de ler esta história nem sabia do que Tonico era capaz e te confesso que nem eu; por que estou inventando essa história nesse minuto e nem sei o que vem pela frente; nem os três trouxas, trouxas sim, pois não sabiam com quem mexiam. Aquele pequeno projeto retesado em músculos e desenvolto em agilidade não disse palavra: De um salto puxou a perna direita do primeiro e enquanto ele caía, deu com o cotovelo no lado esquerdo  do joelho dele, quebrando-lhe a perna na hora; os dois outros que não esperavam essa reação, que mais parecia uma cena de "Chuck, o boneco assassino", ficaram meio que em choque. É claro, valentão que põe medo em covarde não está muito acostumado em ser atacado tão rápido e ainda mais por um nanico ops, que Tonico não me ouça. Só que o Chuck, bom quer dizer, o Tonico, nem tomou conhecimento disso e acertou a genitália, huuuu, do segundo e enquanto ele ia se contorcendo, o pequeno deu um salto preciso e espetacular, acertando, com um murro certeiro a ponta do queixo do terceiro que desabou sem sentidos. O que levou um soco no ssss... ou melhor, na genitália já se recuperara um pouco e partiu pra cima dele pois, o companheiro com a perna quebrada não tinha a mínima condição de combate. Pois bem, ao ser atacado, o anão rolou por debaixo das pernas do brigador grandão e apoiando as mãos no chão, deu com os dois pés nas nádegas dele jogando-o de cabeça no muro, no que o idiota caiu desmaiado com a testa sangrando. Mas a raiva do pequenino zangado não passava e ele correu rapidamente, reabriu sua marcenaria, entrou e saiu com um porrete de peroba para acabar com o primeiro, que rolando no chão, tentava massagear a perna quebrada. Foi ai que se ouviu um grito:
   -Não!
Tonico se virou para trás, buscando a origem daquele grito e depois de tantos anos que ele mastigava ódio, se enterneceu. Seus olhos nunca tinham vislumbrado coisa tão linda. Era uma pequenina ou mais especificamente, 1,10 cm  de mulher tão bela e formosa que ele ficou com a boca aberta, largou o porrete pesado deixando por descuido que aquela arma improvisada cai-se no seu pé: -Aiiiii! Pulava ele num pé só, segurando o que doía. De fato ali estava um anjo ou melhor, um querubim feminino se falarmos em estatura. Cabelos louros, sedosos e ondulados, nos quais o foco de luz da rua denunciava brilho especial, sobrancelhas douradas e bem feitas acima de cílios da mesma cor, denunciavam a naturalidade do tom dos pelos, sem a mínima necessidade de qualquer tintura, olhos verdes como duas esmeraldas cintilantes falavam da cor da esperança no amor, nariz ligeiramente arrebitado, boca carnuda coberta por gloss escarlate, corpo bem torneado e perfeito acinturado e coberto por curto vestido amarelo em tom discreto, mostrava pernas bem torneadas apoiadas em lindos pezinhos com primorosos dedinhos, descreviam aquela "Barbie falante" pela qual o nosso micro herói se apaixonara ali, perdida e irremediavelmente.
  Ela correu até ele, tirou-lhe o calçado e começou a massagear-lhe o pé:
  -Senta no chão um pouco, disse ela e assim que ele se sentou, a pequena foi aliviando o pé de Tonico com o toque de suas mãozinhas. Parou de doer? Dizia ela enquanto massageava o pé do projeto de gladiador, no que o mesmo respondeu:
  -Ééééé...não respondeu nada. Estava era de boca aberta, praticamente babando.
   -Pelo jeito a dor já passou, disse ela largando o pé dele, agora se calce que eu vou ver o que posso fazer por essas três bestas,disse ela.
Finalmente, conseguindo articular a primeira frase para ela o pequeno disse:
  -Você tá preocupada com esse trouxas aí?
  -Mas é lógico, são meus irmãos, né?
  -Sesesesese seus...gaguejou ele.
  -Ta ta ta, não precisa acabar a frase, pois afinal, família a gente escolhe por acaso? Venho seguindo eles desde Itabaiana, que é a nossa cidade. Na verdade já tô cansada deles por que sou eu quem resolve as encrencas.Agora é melhor você ir. Vou ligar pra uma ambulância e vão fazer perguntas. Você pode ser acusado.Vamos, vá, vá embora logo ou você ainda vai bater mais neles?
Tonico mau entendia o que ela falava. Agora já babava literalmente, e em pensamento viajava: -Que voz aveludada, que hálito fresco, que perfume doce. Nunca, mas nem em sonho, ele ficara daquele jeito, completamente de quatro por uma mulher, ainda mais por uma anã. Ele nunca tinha namorado uma. Não gostava de mulher pequena ou você que está lendo não sabe que a performance de bom de briga não lhe rendia algumas garotas grandes? Se viu então, entrando em sua marcenaria para guardar o porrete, com sua mente em sonho, pisando em nuvens. Ouviu a sirene, o barulho do motor da viatura, as vozes da equipe da ambulância, a linda pequena dando detalhes do acidente omitindo a culpa do nanico lutador e quando o carro partiu é que Tonico se deu conta que ela fora embora junto. Ele despertou daquele torpor e correu para fora da oficina mas já era tarde. A mini beldade se fora. Foi então que ele se viu em desespero. Não a veria nunca mais? Não sabia nem o nome dela! Correu ao pronto socorro da cidade, mas não sabia nem o nome daqueles três e nem o dela. Percorreu os corredores da emergência e nada. Foi para casa, deitou mas não dormiu, revirou-se no leito até amanhecer.
  No dia seguinte saiu pela cidade a perguntar, foi ao pronto socorro de Itabaianinha e não haviam dado entrada lá. Com aquelas características não, uma anã loura e três homens. Ninguém sabia. Foi ai que a necessidade fez com que ele se impusesse em uma busca. Iria a Itabaiana e acharia aquela que já era a razão de sua intranquilidade. A vontade de revê-la tornara-se agora uma obsessão. Empreendeu então uma viagem à cidade que ela havia mencionado. Curioso, era a cidade na qual ele queria um dia morar! Quando chegou, a primeira coisa que fez foi procurar o hospital da cidade. Nada encontrou, então saiu a perguntar, no que não teve a minima dificuldade. Só havia uma anã loira que morava ali:
  -Olha, pelo seu tamanho eu acho que você não devia procurar ela não, hein! Ela tem três irmãos que são só enguiço. Brigam, batem  pelo gosto de serem os tais, disse o rapaz da banca de jornais, no que Tonico retrucou:
  -O negócio é o seguinte, e não acabou de falar, engoliu o nervoso pensando:-Eu conheço ele pra ele reparar no meu tamanho? Ah que vontade de partir-lhe a cara! Dissimulou, afinal precisava daquela informação e assim completou a frase mudando o tom de voz, por favor, onde eu a encontro?
  -Vai por aquela viela ali que é fácil, é uma casa amarela com emoldurados brancos que tem um belíssimo jardim de frente. Ela pessoalmente é quem cuida do jardim.
Uma ponta de ciume brotou em Tonico:-"Que elogio era aquele? Ele estava interessado nela por acaso"?       Pensando assim, despediu-se do jornaleiro com um obrigado lacônico e de cara amarrada.
Chegando em frente a casa amarela que era realmente primorosa tanto no acabamento quanto no jardim, tocou a campainha, quando apareceu uma senhora na porta de entrada:
  -Quem é você?
  -Eu procuro uma moça que mora aqui!
  -E essa moça tem nome?
  Ele ficou constrangido mas como além de músculos também tinha esperteza disse:
  -Fiquei devendo um dinheiro a ela mas esqueci o nome.
  -Olha moço, não sei quem você é mas se você fala a verdade ela esta no pronto socorro. E a propósito ela não tem amigos anões. Bom, é lá que ela está e me dá licença que tô muito ocupada.
  -Desculpa dona mas eu fui até lá e não os encontrei!
  -É claro,ela tinha que comer! Lá eles não servem comida pra os acompanhantes. Se você viesse meia hora antes, ia dar de cara com ela voltando pro hospital por aquela rua ali ó. Meus filhos tão de alta sabe e, peraí, você é o anão que bateu neles? Ela me contou, viu! Como você tem ousadia de vim aqui? Foi para dentro de casa e voltou com uma espingarda. Passa fora daqui anão atrevido senão eu descarrego isso em você.       Apertou o gatilho mas a arma não atirou porque estava a muitos anos sem uso e enferrujada. Tonico que não era bobo, não esperou ela engatilhar de novo, saiu em disparada com suas engraçadas pernas curtas.
  -Tonico! Não me olhe assim, com essa raiva toda. Você tem pernas curtas mesmo e sou eu quem está escrevendo a tua história e vou te fazer um final feliz! Não bate em mim não poxa!
  Ele então, parou de olhar pra mim e seguiu novamente para o pronto socorro e chegando lá, seu coração começou a dar saltos. Ele a viu majestosa, maravilhosa aos seus olhos apaixonados, trajada num vestidinho parecido com o da outra noite mas em tom vermelho vivo. Ela ia à esquerda de uma cadeira de rodas em que estava aquele que ele havia quebrado a perna, com a mesma esticada para a frente e engessada, outro ia ao lado dela com uma bandagem na testa e o terceiro com uma faixa enrolada do queixo à cabeça-havia quebrado a mandíbula-, esse urrava de pavor ao avistar Tonico e o da perna junto com o da cabeça gritavam em uníssono:
  -Socorro, tire a gente daqui! Esse Chuck veio pra terminar o serviço!
Já a pequena correu até ele abordando-o:
  -O que você quer mais? Eles já aprenderam a lição e agora você vai fazer o que? Sapatear em cima deles? Eu vi o sangue em teus olhos quando levantou aquele porrete para bater nele; e ela apontou para o da cadeira de rodas; e se não fosse meu grito, ele estaria além de com a perna quebrada com traumatismo craniano também! É o que você quer agora? Sai daqui, você não sofreu nada e ainda se vingou! Chega né?
  Tonico pensou rápido. Não podia perdê-la de vista ou sabia-se ser infeliz para o resto da vida. Sendo o único marceneiro em léguas de distância possuía uma vasta clientela e, além do mais, ninguém ousava lhe dar calote portanto sempre tinha um bolo de cédulas no bolso. Puxou as mesmas e as estendeu para a musa de seu coração:
  -Toma, é para as despesas com eles. Estou arrependido de ter feito isso e quero reparar o que eu fiz;mentira, o que ele queria mesmo era acabar com aqueles trouxas, mas trocava ali todo o seu ódio pela possibilidade de tê-la ao seu lado; mas ela empurrou a mão dele dizendo:
  -Graças a Deus, a gente tem dinheiro pra tratar desses bebezões ai, tanto, que eles não trabalham e vivem pra enguiço. Mas não te interessa porque é assunto de família, agora se é por falta de adeus, adeus! E deu-lhe as costas e que costas, inebriava-se ele.
  Uma assistente social daquela clínica observara toda aquela conversa, além de ter ouvido antes da boca da própria anã, os pormenores do acontecido. Como já conhecia aquela família de tantas vezes que os três davam entrada ali depois de brigas, aconselharia a pequena, ao procurá-la depois, a dar uma chance àquele anão tão cordato e arrependido. Na verdade essa assistente que tinha um nome curioso: "Senhora", sim, esse era o prenome dela que uma vez, contara ter seu pai escolhido tal denominação por amá-la tanto, que lhe daria como que uma alcunha sob a qual ela seria respeitada desde o nascimento. Devo acrescentar que a pessoa de Senhora era por demais romântica e não deixaria aquela história de amor passar em branco, cuja sensibiliade lhe falava ao coração que os dois tinhama sido feitos um para o outro. Além de tudo, aquele anão, vindo de Itabaianinha até ali, acometeu-a de um lampejo sensorial e sem motivo aparente, ligou aquele pequeno a um caso acontecido com aquela pequena. Viu que ele estava perdido e desamparado ao ver sua amada partir. Foi então que aquela sensibilíssima assistente social o abordou:
  -Com licença, permita que eu me apresente, sou Senhora, assistente social desta instituição e acho sinceramente que posso ajudá-lo e muito!
  Tonico, que era muito desconfiado, mas talvez pela necessidade de sua paixão ou mesmo por aquela abordagem tão delicada e educada, olhou para cima, para o rosto de Senhora e disse:
  -Estou tão desesperado que se a senhora ops, não é sarro não, desculpe;ele também sabia ser educado;se conseguir me aproximar dela, te dou esse dinheiro, e estendeu as cédulas à assistente social. "Caramba, de novo ele querendo dar dinheiro! Se da próxima vez ninguém pegar, eu pego, oras!-disse eu hã....pensei tão alto que escrevi, desculpe.
  -Primeiro, não quero seu dinheiro; disse Senhora; segundo, não se importe, já me acostumei, também com um nome assim não é? Mas o que eu quero te dizer é o seguinte, o rosto da Taninha não lhe é familiar?
  -Olha, eu vou te dizer uma coisa estranha já que a sen..., a moça me perguntou. Eu não sou gay hein, mas tenho um ajudante de marcenaria que eu gosto muito dele, assim como se fosse meu irmão de sangue. A gente se dá muito bem e sabe de uma coisa, ele é a cara dela. Eu já bati em uns caras que disseram que ele tem cara de moça, mas ele é macho igual eu mas diferente de mim, é de boa paz. Já até bati nuns trouxas que chamaram eu de zangado e ele de feliz e ah sim, ele é anão com eu e a Taninha, ai; gemeu ele; esse é o nome dela...?
  -Puxa! Você está apaixonado mesmo, hein, e olha, tem umas coisas que acontecem comigo, não sei porque. A verdade é que eu percebo coisas sem ter as idéias do que sejam e as minhas suspeitas sempre se concretizam. Tenho até apelido de mãe Dinah, veja só!
  -Fala quem é que te chama de mãe Dinah e eu quebro a cara dele!
  -Calma sr., como é teu nome mesmo?
  -Antônio; ele pensou melhor e disse: Tonico ao seu dispor. Sabia que se mentisse ali não teria a menor chance de chegar até Taninha.
  -Pois bem, não está na hora de mudar, sr.Tonico? Olha a encrenca que o sr. causou e ainda corre o risco de ficar sem sua amada se continuar agindo assim!
  -Ah, isso não...E aquele micro-valentão que praticamente nunca chorara, chorou e chorou muito.
  -Ai,ai,ai,ai toma esse lenço que tudo tem jeito, é só ter vontade. O fato é o seguinte, estamos talvez, prestes a resolver um mistério de quinze anos atrás. A Tânia, que chamamos carinhosamente de Taninha, não é irmã daqueles lá, é adotada, agora, outra pergunta, por acaso seu amigo fala inglês?
  -Nossa! A senhora, desculpe, é mãe Dinah mesmo hein? Como sabe que faz três anos que ele voltou da Inglaterra? Um casal de anões de um circo inglês adotou ele e o levou pra lá. Deixaram que ele volta-se por que ele quer reencontrar a irmã que ele deixou num orfanato. E esse meu amigo me contou, que os pais adotivos dele não levaram ela por que ela estava na época muito doente e eles queriam filhos com saúde, então só levaram ele. Isso aconteceu quando ele tinha cinco anos e ele lembra de tudo, incrível, não? Ele não gostava de circo e eu não sou só bom de briga não viu! Sou curioso e sempre estudei, inclusive sou bom em inglês. Estudei, arrumei bom empregos, engoli muito sapo mas quis uma coisa minha e montei a marcenaria. Agora trabalho por conta e não engulo sapo de mais ninguém. Tiago apareceu, esse é o nome dele, e porque ali, só eu falava inglês fluentemente, nos simpatizamos de cara ele está trabalhado e morando comigo. Mas olha, eu não sou gay não viu!
  -Relaxa rapaz. O jeito como você olha pra Taninha não deixa a menor dúvida disso. Agora, eu tenho uma notícia maravilhosa pra te dar!
  -Já entendi disse ele quase gargalhando, a Taninha e o Tiago são irmãos gêmeos!
  -É isso mesmo, e ela procura por ele a vida toda. Ela me contou que mesmo tendo cinco anos na época, lembra de tudo. De como seus pais biológicos morreram de malária e a caridade pública os recolheu a um orfanato. De como ela de tanta tristeza enfraqueceu e pegou pneumonia. De como ela quase morreu quando soube, internada numa clínica pediátrica , que tinham levado seu irmão embora. Desde então ela conta a mim chorando, que nunca será feliz a menos que reencontre Tiago, sim, ela não esqueceu o nome dele!
  -É por isso que o Tiago fala do nome da irmã que ele nunca esqueceu e eu nunca entendi o nome direito por que ele fala com sotaque!
  -O destino está interligando a todos Tonico, agora é só trazer Tiago aqui e tudo se resolve, pois eu duvido que fazendo isso, você não conquiste de uma vez o coração da Taninha.
Os dois se abraçaram felizes,  mas a cena mais feliz foi a dos gêmeos se abraçando quando se encontraram.   Ficaram chorando abraçados por dois intermináveis minutos. Tânia também sabia inglês mas não era tão fluente e Tiago, emocionado, não conseguia articular nada do pouco português que aprendera convivendo em Itabaianinha, mesmo com a ajuda de Tonico. Dai em diante foi tudo se encaixando. Com a ajuda de Senhora e de Tiago, foi fazendo amizade com a família adotiva de Tânia. Montou sua marcenaria em Itabaiana deixando-a aos cuidados de Tiago, sob os conselhos de Senhora que lhe sugeriu:
  -Tonico, você tem um bom dinheiro guardado, também é formado em edução física com especialização em lutas marciais, sua fama de brigão já é comentada por aqui. Abre uma academia de luta, pelo menos você canaliza essa agressividade, traz os irmãos adotivos da Taninha como seus aprendizes e depois como seus assistentes e eu aposto, quando aqueles três vagabundos começarem enfim a trabalhar e no que gostam, o coração de Taninha será seu definitivamente, mas por favor, confie no tempo e tenha paciência, eu sinto que ela também gosta muito de você, mas tem medo de relacionamentos. Foi muito magoada antes e é muito sensível. Eu vou te ajudar mas não a assuste e para de fazer essa cara que eu já conheço bem, de querer ir atras de quem magoou a Taninha. Mantenha o foco, trabalhe essa agressividade, rapaz!
   E assim, tudo se resolveu. Tonico montou a marcenaria em Itabaiana e colocou Tiago como responsável. Abriu uma espaçosa academia e com a ajuda de Senhora, convenceu aqueles três a aprenderem a lutar com ele, no que eles descobriram que além de bom de briga Tonico era também excelente professor. É claro que com a orientação da assistente social, a mesma e Tonico, passaram a compartilhar momentos de diversão. Sempre saiam juntos, pois Senhora não tinha namorado. A cada programa divertido a já amiga de Taninha contava à bonequinha loura o quanto Tonico era divertido e generoso. Tonico, por sua vez, tratava Tânia com descrição, sem demonstrar muito interesse. Isso foi criando nela uma onda de ciúmes, que quando se deu conta, de tanto a amiga insistir perguntando para ela  porque tanta tristeza de uns tempos pra cá, Taninha, pedindo desculpas por achar que Senhora já namorava com ele, confessou estar completamente apaixonada por Tonico. O plano foi coroado de êxito. Senhora então disse, estando em sua casa, pois Tânia tinha ido até lá desabafar com ela:
  -Como você é boba, lindinha, nós não estamos namorando não! Basta um telefonema meu e você vai ver o que acontece.
  Senhora ligou para Tonico. Ele se preparou, comprou um ramalhe de rosas vermelhas, as preferidas de Tânia e foi à casa de Senhora. Tânia não tinha a menor dúvida, não tinha mais forças para negar, amava Tonico com toda a sua emoção. Cheirou as rosas, Senhora as tomou das mãos dela e disse:
  -Fiquem à vontade que eu vou arrumar um vaso.
  Es os dois se entregaram em um beijo terno e com a fome de uma grande espera. Namoraram, noivaram, casaram-se.  Senhora foi a madrinha, o padrinho foi um dos irmãos já não mais brigões ou melhor, brigões sim, mas com o excelente treinamento de Tonico, brigavam agora por cinturões do MMA. O outro dos irmão de Tânia, foi o que a levou ao altar pois o pai adotivo já tinha falecido. Esses então compadres ou seja, um irmão brigão e Senhora, já haviam se olhado antes mas Senhora não dava a menor chance para vagabundos e não era pra menos. Contudo, agora empregado como lutador, se igualara a ela como lutadora das causas de seus assistidos no serviço social. Senhora e o irmão de Tânia engrenaram então um namoro com grandes expectativas de futuro. Tânia engravidou, o que causou o furor de todos os amigos e de toda a família. Uma bela menina nasceu e o casal não teve dúvidas, o nome de batismo da primogênita seria o daquela que era então a deusa da vida de todos, mas ela era tão pequenininha que aqueles pais a batizaram com o pitoresco nome de Senhorinha.






    





segunda-feira, 1 de julho de 2013

TOLÁTÁLÔ

Lavão ou melhor Sr. Olavo e sua esposa Anete, jamais esperaram passar por aquele pânico angustiante. Embora a pequena Eva Ananda já fosse peralta o suficiente para torná-los vigias constantes de cada gesto dela, apesar daquela minúscula boneca loira contar apenas 3 anos de idade, uma simples distração e ambos estavam profundamente arrependidos de não notar que ela já aprendera a mexer naquele antiquado ferrolho da porta de entrada. O minúsculo projeto de liderança feminina, trancara o acesso à residencia com os pais para o lado de fora, justamente quando eles saiam para visitar o caçula internado com pneumonia. O caso é que os dois pequenos, na semana anterior, haviam desaparecido e reaparecido 15 minutos depois, ele com  febre e ela espirrando. Os pais viram uma revista de "Fotografias de Todo o Globo", que caída ao chão, apresentava um poster mostrando a paisagem branca da antártica com pinguins imperadores. Ao ver os dois tilintando de frio, seu Lavão perguntou nervoso:
 -Eva Ananda Candres, onde você estava com o teu irmãozinho?
 -Levei ele pra vê pinguim, ué? Mais num gostei. Muito frio, voltei logo, a...a... atchim!
 -Anete, disse Olavo, aquece esses meninos, eles tem gelo nos cabelos e nas roupas!                                
.....................................................................................................................................
 -Olavo chegou a boca ao buraco da fechadura e chamou:
 -Evinha! Abre a porta pro papai, abre?
 -Num abru!
 -Abre meu doce de cabelo de anjo, pra mim! Dizia dona Anete.
 -Tamem num abru!
 -Porque docinho, porque? E enquanto a mãe falava com a menina, o pai levava a grande escada do quintal para ganhar o acesso ao quarto de cima.
 -Purque eu vô imbora. Já to com meu dinhero.
 -Não vá quebrar seu porquinho de louça, foi sua avó que te deu!
 -É meu i si eu quisé  eu quebro pra usa o dinhero!
 -E onde você vai que precisa de dinheiro?
 -Tô braba, não gosto mais de vocês. Vô pra Austrália! Vocês brigaro comigo. Falaro que eu dexei meu irmãozinho doente, mas não fui eu, já falei, ele escorregou e caiu de costa no gelo. Nesse momento a mãe não ouviu mais a voz da filha.
 Lavão conseguira empurrar a janela do quarto por fora. Sorte ter deixado a tramela aberta, pois permitiu que com muita dificuldade pela largura da passagem e alguns machucados e  palavrões, ele conseguisse ganhar o interior da casa.Um cheiro que já lhe era familiar, com tudo estranho, um aroma de almíscar levemente ácido, inundava a sala de onde a criança se recusara a abrir a porta. Resquícios de uma névoa leitoso dourada se espargia à frente do sofá e a menina, onde? Ele correu abrir a porta para a esposa que entrou aflita, mas que logo se desesperou com a notícia: a menina desaparecera. Lembranças surgiram ao casal de desde o primeiro ano do nascimento dela. Com 1 ano ela sumiu do berço e foi encontrada  no jardim. Com 2 anos sumiu com o caçula de 1 ano e reapareceu sozinha. Quando perguntaram onde estava o irmão ela respondeu:
 -Na minha queche.
 -Como na sua creche? Perguntaram os dois.
 -Levei pra brincá cos amiguinho.
 Em seguida o telefone tocou:
 -Seu Olavo?
 -Sou eu!
 -É muito estranho, mas o senhor pegou a Evinha aqui e a levou. Uma hora depois ela estava aqui de novo com o irmãozinho. Quando eu fui falar com ela, ela sumiu e o seu filhinho ficou aqui!
 Outros incidentes aconteceram como o do dia em que ela foi sequestrada e enquanto os sequestradores combinavam o preço do resgate pelo telefone com dona Ivete ela puxou a saia da mãe:
 -Cum quem cê tá falando?
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 Os dois então, se deram as mãos e disseram em uníssono:
 -E agora, o que vamos fazer?
 Ela foi rezar, ele guardar a escada. Sem dizer mais nenhuma palavra, sabiam intimamente que não tinham nada a fazer a não ser esperar. Sentaram-se no sofá, onde a tinham visto deitada pela última vez através do buraco da fechadura, quando na tentativa de que ela abrisse a porta diziam:
 -Abre a porta amor! Tem um gatinho bonitinho aqui!
 -Num tem gatinhu não, dizia ela olhando pela mesma fechadura, num vô abri, falei qui tô braba, eu não dexei meu irmãozinho doente e pronto! E voltava, e deitava no sofá pondo o cofrinho em cima da barriga. Choraram, choraram muito, choraram juntos numa aflição que durou 3 horas, quando ela reapareceu:
 -Oi, quis voltá! Gosto di vocês. Num tô mais braba. Sadade! Vamo vê meu irmãozinho?
 -Onde você estava, filha? Dizia o pai.
 -Não faz mais isso com a mamãe, amor! Dizia a mãe.
 -Fui na Austrália, já falei!
 Os pais notaram o cofrinho em uma mão e... pelos na outra? Olavo tirou os pelos da mão da filha, correu à cozinha e guardou-os num saquinho plástico.
 -Você nem sabe o que é Austrália, minha filha! Você nunca viu!
 -Ví sim, ta na fotrogafia, olha aqui, pegou a revista, abriu numa página e mostrou o porto de Sidney, depois da praia com essa casa grande com seis ponta, fui pra selva e andei de canguru. E abriu outra página ainda no capítulo da Austrália, e mostrou os cangurus.
 Dona Anete se ajoelhou em lágrimas e implorou:
 -Evinha, nunca mais faça isso ou então, sua mãe vai morrer de desgosto! Ela disse essa frase com tanto sentimento que Evinha tomou um choque. Nunca vira a mãe chorar daquele jeito.
 Sr. Olavo levou os pelos que havia acondicionado no saquinho plástico para um amigo biólogo que analisou, discutiu o resultado com veterinários e pesquisadores e a conclusão foi inegável: eram verdadeiramente pelos de canguru. Depois do resultado positivo do exame, o pai deu um susto maior ainda na pequerrucha, dizendo que se ela continua-se fazendo aquilo, viriam uns homens loiros e sardentos e de cabelos vermelhos, americanos maus, que iriam leva-la para os Estados Unidos e cortar o corpinho e abrir a cabeça dela para saber o que tinha dentro. Ela abriu o berreiro, parou um pouco e perguntou:
 -O que é sarnento?
 -Sarnento é quem pega uma doença chamada sarna que da coceira e deixa a pele feia e fedida, mas eu falei sardento, que é homem que tem a pele pintadinha, cheia de pintinhas pequeninhas. A pequenina disse:
-Ah...tá, uáááá´, eu num faço mais, num faço mais!
  Esse susto, fez acontecer alguma coisa com a pequena porque realmente, o fenômeno parou de acontecer.
  O caçulinha enfim recuperou-se da pneumonia e voltou para a casa.
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 Os anos então, correram tranquilos sem incidendentes dignos de menção. Eva Ananda conheceu Flávio, um psicólogo muito centrado, casaram-se, nasceram Ana Lua, a Analu e depois José Paulo o "dabadinho", porque os pais o chamavam de danadinho, palavra que Analu não sabia falar. Nossa heroina conseguira então, realizar todos os seus sonhos. Estava realizada profissionalmente, amorosamente e finalmente era mãe, e de um belo casal de filhos. Como estava feliz, sua natureza biológica e paranormal retornou. Primeiro foi aquele cheiro levemente ácido de almíscar que ela sentia, depois pontos luminoso dourados se espargindo em filetes leitosos cor de ouro. Ela começava a vislumbrar um outro lugar, ao mesmo tempo que via o lugar onde estava. Um dia, querendo estar com o esposo, Flávio, apareceu dentro do banheiro do consultório dele. Quando saiu, abriu a porta e deu de cara com ele:
 -O que você faz aqui? Disse Flávio.
 -Não sei? Tive saudade de você e de repente, me vi aqui! Disse Eva.
 -Então é verdade...tudo o que você me contou é absurdo mas agora estou tendo as provas!
 -Que provas?
 -Você acha que eu já não observei? Frequentemente você está trancada no banheiro e em seguida te vejo na cozinha. Um dia deixei você deitada para eu socorrer a Analu que estava tendo um pesadelo, quando abri a porta do quarto,você já estava lá.Por isso andei pesquisando:Você tem a faculdade de se teletransportar! É, como no "Jornada nas Estrelas", com a diferença de que no filme existe um equipamento e você tem isso em si, é natural. Não lute contra isso mas aprenda a controlar. Sem você saber, ouvindo as histórias sobre os fenômenos que lhe aconteceram, eu estudei e pesquisei muito sobre o assunto, começando essa busca por informações pertinentes ao assunto, um ano após termos nos conhecido. Colhi depoimentos fiz experimentos e descobri uma outra pessoa que sofre o mesmo fenômeno. O  teu caso é muito raro, mas nem por isso deixou de ser comum a poucos dos grandes vultos da história. Pesquisas levantaram teorias quase afirmativas de que o vulgo Jack, o estripador, nuca foi encontrado por controlar o mesmo poder.. Terrível, não? Já para o lado do bem, como você acha que Da Vinci tinha tanta sabedoria? É claro que ele era inegavelmente um gênio, contudo ele também possuía essa faculdade e a utilizava para estudar em escolas e com professores de lugares extremamente distantes e em fração de segundos de um ponto a outro de maneira a absorver o melhor do conhecimento em tempo recorde. Desde os tempos imemoriais, apareceram na civilização esses teletransfers sim, você é uma teletransfer. Já desenvolvi uma técnica de indução psíquica para o teu caso.  Eu vou te ajudar.
  Como grande estudioso da mente humana, Flávio submeteu Eva Ananda a tratamento hipnótico até que ela se tranquilizasse e passasse a controlar sua faculdade. Dai em diante foi tudo alegria, ela passou a usar esse dom para tornar sua vida e a dos seus, mais prática e divertida.
  Um dia, ela se preparava para fazer uma dessa viagens, levando os seus pequerruchos:
 -Vamos viajar?
 -Pra onde mãe, disse Analu, eu quero a Disney.
 -Pá ondi mamá? José Paulo observava Analu e repetia o que ela falava, Disny, Disny!
 -Que Disney o que, seus moleques! Já levei vocês lá pelo menos 10 vezes, 20 no Hopi Hari e 50 vezes no parque da Mônica, chega! Vamos para um lugar diferente...que tal a Austrália?
 A campainha tocou. Era Heloisa, uma colega de serviço que já praticamente era de casa:
 -Eva, tô viciada em Zumaº, e o o meu computador pifou. Deixa eu jogar no seu?
 -Claro Heloisa, pode entrar e jogar!
 -Heloisa? Não me lembro a última vez que você me chamou assim!
 -Tá bom Helô, eu vou dar uma saida depois eu volto, pode jogar à vontade.  Heloisa não sabia da sua paranormalidade; aliás, ela, os de casa e seus pais sabiam, falavam e repetiam que ninguém poderia saber, senão seria aquele inferno.
 -Onde você vai, se arrumando assim com os meninos?
 Eva Ananda pensou , pensou e respondeu:
 -Lá. Estou indo até lá esta bem Heloisa?.
 -Eu hein? Não diz onde vai e ainda me responde tão formal assim!
 -Tá bom Helô! Estou indo até lá então fica assim: Estou é tô, lá é lá mesmo, está bem será tá e Helô é Lô! Tô lá, tá lô? Dizendo isso, Ana que já abraçava as crianças, sumiu.
 Heloisa, que já enterrara os olhos no seu jogo Zuma, no computador de Eva, nem notou o desaparecimento em passe de mágica. Só viu no ar aquela névoa leitoso dourada.
 -Que isso? Que cheiro de almíscar! Deixa pra lá se não eu não bato o recorde do jogo.

 º Zuma, jogo de computador em que um sapinho sorrindo com cara de bobo, não para de cuspir esferas coloridas. Cada esfera com sua cor encontrando uma fileira de esferas da mesma cor em fila, explode-as, evitando que a bocarra de uma caveira engula todas as bolas de uma vez, causando a perda do jogo.


  
    






segunda-feira, 17 de junho de 2013

TALITA

  Roberto sentia um vazio no peito que não sabia explicar. Era verdade que ele não aguentava  mais as chacotas sobre sua solteirisse, palavra estranha, mas que identificava bem a sua vocação para a solidão. Que adiantava? Quando ele queria elas não queriam, quando elas queriam ele não se interessava. O que faltava, de verdade, era um amor verdadeiro, um arrebatamento ao seu coração. Já estava perdendo as esperanças, já tinha pensado até em estudar para ser padre! Não era desses aventureiros que aceitavam mulheres que não se valorizavam, queria uma com a simplicidade de menina mas ao mesmo tempo, com a magia sedutora de uma mulher.E nessas idas e vindas da vida, nada mudava a esse respeito.Uma noite, remoendo sua frustração, adormeceu em seu leito após as preces habituais e,ante sua visão surpresa, ao descortinar-se uma neblina leitosa dos dias que preveem calor intenso, uma voz de mulher cantava:
 ...Tenha calma não se vá meu pobre santo tenha fé.
 ...Te prometo vir a ser do jeito que você quer.
 ...Um amor, de mulher...
  Ele procurava na neblina e quando a voz findava ele chamava:
-Vasty! Vastyyy....
  Quem era Vasty? Como que em resposta, em meio à névoa um rosto surgia ao longe, uma mulher de perfil virava o pescoço para a direita e olhava-lhe misteriosamente nos olhos com um meio sorriso, dava-lhe as costas e sumia na neblina. Ele desesperadamente, ia naquela direção, quando então acordava ofegante. Esse sonho passou a repetir-se toda a noite. A canção, ele chegando perto dela e o final frustrante. Num dos sonhos,chegou a sentir o perfume dela mas ao estender a mão para tocá-la, ela desaparecia novamente. Aquele sonho se repetindo foi deixando-o depressivo. Os amigos aconselhavam: "Procure um psiquiatra"! Eu não sou doido, isso deve ter uma explicação! Mas a única explicação era absurda. Ele estava perdidamente apaixonado pela mulher daqueles sonhos. Até deitava-se mais cedo na ânsia de revê-la e a revia sempre em sonho. Contudo, seu desespero aumentava ao não poder tocá-la. De tanta angústia, venceu o preconceito e marcou a consulta com o psiquiatra.
  Aquele era um dia realmente ruim. Pelo menos era o que ele sentia. Era como se todo o seu corpo doesse. O céu lindo e límpido, o clima morno de meia estação, o perfume das plantas e flores que ladeavam seu caminho, os olhares curiosos para aquele homem taciturno que até parecia interessante, para as moças bonitas que entravam e saiam de uma agência de modelos por uma rua em que ele passava, nada lhe chamava a atenção. Ele só  pensava nela: "Vasty, Vasty, Vasty"! Imaginava estar às portas da loucura.
  Já no consultório psiquiátrico, uma moça aguardava ansiosa para ser chamada. Uma outra mulher, vizinha do outro sofá da sala de espera, perguntou a ela aos cochichos:
 -Porque você veio? O que você tem?
 -Ela, muito educada respondeu:
 -É loucura, você não iria acreditar!
 -E nós não estamos aqui por isso mesmo?
 -Mesmo o que?
 -Loucura, oras! Quem vem a um psiquiatra se não for por loucura? Eu mesma só aceitei vir para que não me interditassem. Imagina você, e falou mais baixo ao ouvido dela, ninguém acredita que o Brad Pit     é apaixonado por mim. Aquela coitada da Angelina Jolie nem sabe que ele vai trocá-la por mim. E eu só estou te contando porque você parece uma boa menina. Você quer conhecer o Brad Pit?
 A essa altura a interpelada já estava horrorizada. Estava ali por um problema sem solução e só aceitou procurar o especialista por que se sentia literalmente enlouquecer. Nessa altura um homem chama a "namorada do Brad Pit":
-Vamos embora irmã, já falei com o seu médico.
-E o que ele tinha para falar com você que eu não podia ouvir?
-Ele pediu para você trazer o Brad na próxima consulta, ele quer pedir um autógrafo, agora vamos embora! E praticamente a arrastou pelo braço.
 A moça que ficou, estava transtornada. Era assim o tratamento ali? Encorajavam as ilusões dos pacientes? Ela entrou no banheiro para espairecer. Enquanto ela jogava água no rosto e no pescoço, Roberto dava entrada ao mesmo consultório. Estava desolado. Como um psiquiatra iria suplantar a falta que ele sentia de uma mulher, literalmente dos seus sonhos? Uma voz feminina ecoou numa canção:
...Tenha calma não se vá meu pobre santo tenha fé..
...Te prometo vir a ser do jeito que você quer...
...Um amor, de mulher...
 Roberto foi até a porta do banheiro:
 - Eu reconheço essa voz, é ela, é ela!
  A secretária foi  até ele:
 - O banheiro está ocupado, senhor!
 - Abram essa porta agora, disse ele agitado, abram essa porta!
  Não foi preciso, a moça saiu do banheiro para ver o que acontecia e... deu de cara com ele. Os dois arregalaram os olhos, gritaram ao mesmo tempo e... perderam os sentidos. A sorte é que a queda de ambos não foi de mau jeito, então não se lesionaram. Colocados em duas macas no consultório, voltaram a si 2 horas depois, os dois abriam os olhos simultaneamente, um em cada maca, em quartos diferentes daquela clínica. Quiseram levantar mas estavam com soro instalado.
 -Calma, disse o médico que acompanhava, deixa a pressão se estabilizar!
 A moça então disse:
 -Não é alucinação, ele realmente existe!
 -Quem existe? Perguntou o médico?
 Então ela contou:
 -Minha infância foi a melhor que uma criança poderia ter. Subi em árvores, mordi fruta no pé, tomei leite tirado na hora, andei a cavalo, tomei banho de cachoeira,tive dezenas de cachorros e gatos e até fui boa no futebol,na bicicleta e na capoeira até que...eu cresci, ai meus problemas começaram.Havia uma agonia dentro de mim que não passava desde a primeira adolescência, até que...piorou, comecei a sonhar com um homem todas as noites que corria atrás de mim e eu fazendo graça, como se brincasse com ele, eu escapava e me escondia fazendo charme. Acontece que quando eu acordava, ficava morta de raiva de mim. Porque eu não parava para conversar com ele? E isso se repetiu por anos, fui ficando triste, depressiva e praticamente então, me empurraram para uma consulta psiquiátrica. Nem passei no médico e na sala de espera e eu o vejo, o homem dos meus sonhos!
 O médico não acreditava, tinha de acarear aquilo. Foi até Roberto que confirmou o sonho complementando que a via ali pela primeira vez, mas tinha certeza de que ela se chamava Vasty. O doutor ficou perplexo, pelo fato da moça ter afirmado que o nome dele era Roberto. Não lhe restava outra alternativa senão a de por um de frente para o outro, e não perderia essa aventura por nada. Exigiria ser o padrinho.
 Quando os dois ficaram frente a frente de novo, se jogaram nos braços um do outro sem titubear. Se abraçaram, se beijaram, trocaram eu te amo e o resto todos poderiam prever, mas uma coisa Roberto queria corrigir:
 -Vasty, a música que você cantou até nos meus sonhos é do Djavan e se chama Tenha Calma. Tem uma frase que diz meu pop star e não meu pobre santo, como você canta.
 -Olha, amado imortal, eu acho que ouvi a Bethânia cantar desse jeito na novela Tieta.
 -Quem sou eu pra discutir, eu quero mais é te curtir. 
  Casaram-se, o psiquiatra foi o padrinho, colecionando aquele incrível relato de amor para o rol de suas histórias.
  O tempo passou e Vasty engravidou. Os dois passaram a pesquisar vários nomes, mas nem eles conseguiam explicar porque, só procuravam nomes femininos.
-Querida, Cibele quer dizer mãe dos deuses ou deusa mãe, ligada à fertilidade, também foi designada com a senhora dos animais.
-Querido, Paula é pequena, Bruna é morena, Ana era avó de Jesus e também é cheia de graça.
-Caramba, eu falo um nome, você fala trezentos, que humilhação.
-Meu príncipe, façamos o seguinte, repetiremos vário nomes, e se a barriga mexer, a escolha foi dela, certo?
 -Certo, minha toda vida.
-Bárbara, Semiramis, Fernanda, Ana Caudia, Rosario, Andreia...dizia ela.
-Fátima, Eliane, Elaine, Tatiana, Mariana, Rute... Gislaine, dizia ele.
-Ai vida minha, que disputa difícil. Faz favor, me pega um saquinho de chá ali no armário e faz um chá pra mim?
-Faço, amor eterno, mas você quer de frutas vermelhas, camomila, erva-doce, hortelã....
-De camomila, meu perfume raro, mas por favor, guarde tudo no mesmo lugar que tirou, porque você bagunça as coisas e depois, eu com esse barrigão vou ter que me virar para achar o que você escondeu.
-Oh, minha mina do mais rico ouro, olha onde eu estou colocando, pra não dizer depois que eu pus fora de lugar, olha preste atenção, coloquei ali, ta ali, ta?
-Roberto, a barriga se mexeu! Ele correu para ela, pôs a mão na barriga, esperou e nada. Vasty falou:
-O que você disse, meu bem?
-A última frase?
-Sim, o que você disse por último!
-Eu disse ta ali, ta!.
-Ui! Põe a mão aqui, meu encantador...isso, agora repete.
-Tá ali ta, tatatata, ta mexendo, ta mexendo!
-A nossa filha escolheu o próprio nome! Que incrível!
-Que nome, meu pavê, ta ali ta?
-Não, seu bobo lindo, Talita, esse vai ser o nome porque ela escolheu!
-Nada é mais incrível em nossa vida, meu doce.
 E foi assim que um bebe na barriga da mãe, surpreendentemente, escolheu seu próprio nome.  E para complementar todas aquelas fantásticas coincidências, nasceu uma doce menina:
  Talita.   
 Vale observar que o nome Talita quer dizer garotinha. Em Marcos 5:21-43, Jesus teria ressuscitado a filha de Jairo com a frase em Aramaico ou Hebraico Arcaico: "Talitha cumi" ou "Thalita kum ou "Talitha qoum" que significa: "Garotinha eu te ordeno: levanta."






sexta-feira, 7 de junho de 2013

AVEDICE

 O ocaso tingindo o céu em tonalidades lilases dava a impressão de uma imagem exatamente gemelar ao alvorecer. A paisagem semi-árida vislumbrava uma cena fotográfica. A caatinga logo abaixo, deixava à mostra um amplo cenário onde o sol castigava um chão de terra vermelha e pedras miúdas com essa vegetação rasteira que teima em sobreviver em clima semi-inóspito. Seguindo adiante, uma estrada de solo rústico, esculpido sob patas de cavalo, pisadas humanas e tempestades anuais, serpenteava em ampla curva que circundava  uma enorme rocha, essa descomunal pedra, ostentava uma árvore quase que desprovida de folhas, um tanto ressequida, que já servia, a um tempo do qual se tinha perdido a contagem, de pouso para uma ave misteriosa. Já a denominavam, desde muito, "a pedra da ave preta".Essa ave era um animal sinistro, tal qual uma arara em luto, porquanto penas, garras e bico eram de uma cor negra de tonalidade tão plástica, que brilhava aqui e ali, refletindo qualquer emissão luminosa, fosse solar ou lunar ou mesmo sob holofotes relampejantes de um raio na tempestade. O mais impressionante era o reflexo de seus olhos; duas pupilas cor-de-rubi que como que acendiam quando fixavam em alguém. Arrepiante mesmo. Pássaro temido, era visto como bicho-de-mau-agouro, pois um nativo mais afoito dali, rapaz voluntarioso, tentara eliminar o animal com um estilingue e no momento de lançar a pedra, caiu um tombo, do qual ninguém diria que quebraria o pescoço e morreria instantaneamente. O Pássaro passava a maior parte do dia ali e vez ou outra, partia dali e pousava próximo a uma casa, a um posto, a uma escola, a uma igreja e falava, mas não falava qualquer coisa. Dizia nomes apenas ou frases curtas, mas o que dizia, acontecia. Se era temido pelas más previsões, também trazia alegria quando previa bons acontecimentos.
 Um casal morava naquela pequena cidade do sertão, sofrida pela baixa umidade, já havia alguns anos. Se amavam profundamente contudo dois fatores entristeciam seus semblantes: A falta de chuva e a falta de um filho. Lamentavam o fato de naquele lugar distante não ter um consultório médico sequer. Também nenhum médico aceitava clinicar naquele fim de mundo, terra de ninguém onde a justiça era exercida pelo coronel que fazia suas próprias leis. Sem um atendimento médico com o qual eles acreditavam solucionar seu problema de fertilidade, procuravam a única benzedeira do lugar e rezavam para que ela não morresse pois já contava 94 anos e não tinha nenhuma outra herdeira daquele seu dom. Ela curava espinhela caída, cobreiro, dores reumáticas, depressão, pneumonia, dor de garganta, impotência e já conseguira até curar um ou outro caso de infertilidade mas aquele caso em particular ela não conseguia solucionar. Eles não a desmereciam, tinham fé e se Santo Antonio tinha lhes aproximado para que chegassem ao casamento, haveria algum santo que através da benzedeira, lhes daria um filho.
 A ave apareceu. pousou no pé de mandacaru no portão da casa e quando a mulher passava com a roupa que lavara nas últimas águas do açude a 1 km dali, o pássaro falou com o timbre sonoro de uma gralha: -Grá,grá, vai chover,o coronel vai cair,teu homem vai assumir e você vai engravidar!Falou tudo e saiu em revoada com destino à velha árvore.Ela foi até seu marido que estava consertando a cerca no fundo do terreno e falou:
 -Home, eu vo fica prenha!
 -Óxente, quem te disse mulé?
 -A ave disse, home!
 -E ocê acredita nessa história, oxi? Tome tento nesse quengo, muié!
 -Óia que ela acerta! Ainda disse que vai chuvê, o coroné vai cai e ocê vai assumi!
 -Assumi o que, óxente!
 -Sei lá, acho que no lugar dele.
 -Fala baixo que tem jagunço pra todo lado. Se eles ouvi, eu to morto!
 -Não fui eu, foi a ave que disse. A ave disse, ára!
 Eles nem perceberam que um moleque brincava ali perto da cerca e ouvindo tudo,  foi correndo contar para o coronel. O latifundiário lhe deu uns trocados e chamou seus capangas:
 -Ozezo! Ocê é meu braço direito!Vá com Zé Homi que não tem medo nem da morrte. Ocê dê cabo daquela ave dus inferrrnos, visste? E ele que cuide do cabra safado que qué meu lugarr!Vai chuvê? Isso num me interessa. Si minhas cisterrna, meus poço e meu açude parrticularr mi dão a água que eu quero e deixa esse povo pricisando de mim, assim, na rédea currta, como tem de ser.Ninguém vai pensá em tomá minha corôa e ficá vivo pra rir de mim!
  Não se questionavam as ordens do coronel, contudo os jagunços saíram apreensivos. Conheciam a fama da ave e se ela disse que ia chover e que haveria um novo rei do sertão, assim seria. As duas feras humanas, pois o coronel só escolhia homens que torturavam e matavam dando risadas, se encaminharam, Zé Homi para a casa do casal e Ozezo para a pedra da ave preta. A meio caminho de cada um, o céu escureceu, de um escuro tão denso que um meteorologista acertaria se o chama-se de cumulonimbus. Em seguida uma chuva torrencial começou e Zé Homi pensou:
 -Arriégua num é que vai chove messmo? Maiss num me avécho não, vô dispachá esste cabra cum chuva e tudo, ochi!
  Engatilhou sua garrucha e a enfiou no cinturão. Desabotoou uma bainha presa à cintura e puxou um punhal cuja lâmina cintilou ao reluzir de um relâmpago. Correu o polegar esquerdo ao longo do  fio e: -Ai! Afiei mutcho essta pesste! Um brotar de sangue avermelhou sua digital que ele levou à boca: - Huum, sangue bom é quando só sai do corrpo dos otro e não do meu e é com esste punhá aqui qui eu vô sangrá aquela bessta humana qui ousô disafia o coroné!
  Ao chegar a dois metros do portão, um raio caiu em cima dele. A carga foi tão forte, que seu corpanzil de dois metros e dez de altura foi reduzido a um metro e meio esturricado. Sua garrucha, punhal e até um soco inglês que seu irmão detento lhe mandou de São Paulo, derreteram até virar um amálgama de metal. O casal protegido dentro de casa, só daria conta do acontecido muito tarde pois a enxurrada já carregava o cadáver carvão para os lados do açude.
  Ozezo, debaixo de chuva, fincando suas botas de couro cru a cada pisada  para não escorregar na lama, deu de cara com a ave que, apesar da tempestade, parecia que esperava por ele. Ele olhou a ave e ela fixou seus olhos vermelhos e fantasmagoricamente brilhantes nos dele, e aquele homem, que já tinha enfrentado soldados sozinho, matado meia dúzia e conseguido escapar para aquelas bandas de longe de qualquer lugar e mudado de nome e de aparência, protegido pelo coronel, sentiu um arrepio gelado na espinha, e não era da chuva. Empunhou a espingarda e antes que pudesse compor a mira com toda aquela água atrapalhando, a ave disse quase que tenebrosa e guturalmente:
-Vai morreeeer! E enquanto a voz da ave negra ecoava, ela de um salto, alçou voo e foi para cima do facínora direto em sua veia jugular. A bicada voraz e certeira prorrompeu numa hemorragia abundante, matando aquele que já tinha morado uma vez em uma gruta e passado fome por trinta dias se escondendo da busca dos soldados armados. Foi vítima de uma simples ave. Enquanto os olhos de Ozezo reviravam ao suspiro final, ao tombar por terra, a água lavava seu sangue e já arrastava seu corpo para terras mais baixas. O pássaro negro, por sua vez, saltou daquele corpo já sentenciado e rumou voo em tempestade para a casa do coronel, que estava ansioso olhando pela janela. A ave pousou num jardim suspenso que ele havia mandado fazer com primor na frente da janela, de altura que ele pudesse visualizar as flores e ao mesmo tempo a entrada gramada para sua casa. A cada relâmpago, as pontas das penas e o o bico, como que retinham fragmentos dos raios, prolongando o reflexo. Mas o que mais impressionava, era que a ave olhava fixamente para ele com suas pupilas cor-de-sangue em brilho vivo, sumindo e surgindo, entre escuridão e clarão, fazendo aquele opressor que só era valente com guarda-costas armados à sua volta, ser tomado de súbito pânico, tendo sua pressão aumentada vertiginosamente, lhe causando um infarto fulminante que o fez cair à frente da janela. Ali acabaram 50 anos de tirânico reinado sertanejo.
 A chuva passou, o casal só soube dos acontecimentos pelo povo dali, que levou o dono daquela rude tapera onde a pobreza também morava, em cima dos ombros para a casa do coronel e depois de toda a história virada e revirada, nem o povo dali, nem o novo coronel desta história, sequer questionaram as previsões porque a sua mulher também engravidara. A nova senhora da casa da fazenda, já bem instalada, deu a luz a uma linda e saudável menina a quem, em homenagem ao pássaro, colocaram o exótico nome de Avedice.
 A ave negra nunca mais foi vista.