sexta-feira, 7 de junho de 2013

AVEDICE

 O ocaso tingindo o céu em tonalidades lilases dava a impressão de uma imagem exatamente gemelar ao alvorecer. A paisagem semi-árida vislumbrava uma cena fotográfica. A caatinga logo abaixo, deixava à mostra um amplo cenário onde o sol castigava um chão de terra vermelha e pedras miúdas com essa vegetação rasteira que teima em sobreviver em clima semi-inóspito. Seguindo adiante, uma estrada de solo rústico, esculpido sob patas de cavalo, pisadas humanas e tempestades anuais, serpenteava em ampla curva que circundava  uma enorme rocha, essa descomunal pedra, ostentava uma árvore quase que desprovida de folhas, um tanto ressequida, que já servia, a um tempo do qual se tinha perdido a contagem, de pouso para uma ave misteriosa. Já a denominavam, desde muito, "a pedra da ave preta".Essa ave era um animal sinistro, tal qual uma arara em luto, porquanto penas, garras e bico eram de uma cor negra de tonalidade tão plástica, que brilhava aqui e ali, refletindo qualquer emissão luminosa, fosse solar ou lunar ou mesmo sob holofotes relampejantes de um raio na tempestade. O mais impressionante era o reflexo de seus olhos; duas pupilas cor-de-rubi que como que acendiam quando fixavam em alguém. Arrepiante mesmo. Pássaro temido, era visto como bicho-de-mau-agouro, pois um nativo mais afoito dali, rapaz voluntarioso, tentara eliminar o animal com um estilingue e no momento de lançar a pedra, caiu um tombo, do qual ninguém diria que quebraria o pescoço e morreria instantaneamente. O Pássaro passava a maior parte do dia ali e vez ou outra, partia dali e pousava próximo a uma casa, a um posto, a uma escola, a uma igreja e falava, mas não falava qualquer coisa. Dizia nomes apenas ou frases curtas, mas o que dizia, acontecia. Se era temido pelas más previsões, também trazia alegria quando previa bons acontecimentos.
 Um casal morava naquela pequena cidade do sertão, sofrida pela baixa umidade, já havia alguns anos. Se amavam profundamente contudo dois fatores entristeciam seus semblantes: A falta de chuva e a falta de um filho. Lamentavam o fato de naquele lugar distante não ter um consultório médico sequer. Também nenhum médico aceitava clinicar naquele fim de mundo, terra de ninguém onde a justiça era exercida pelo coronel que fazia suas próprias leis. Sem um atendimento médico com o qual eles acreditavam solucionar seu problema de fertilidade, procuravam a única benzedeira do lugar e rezavam para que ela não morresse pois já contava 94 anos e não tinha nenhuma outra herdeira daquele seu dom. Ela curava espinhela caída, cobreiro, dores reumáticas, depressão, pneumonia, dor de garganta, impotência e já conseguira até curar um ou outro caso de infertilidade mas aquele caso em particular ela não conseguia solucionar. Eles não a desmereciam, tinham fé e se Santo Antonio tinha lhes aproximado para que chegassem ao casamento, haveria algum santo que através da benzedeira, lhes daria um filho.
 A ave apareceu. pousou no pé de mandacaru no portão da casa e quando a mulher passava com a roupa que lavara nas últimas águas do açude a 1 km dali, o pássaro falou com o timbre sonoro de uma gralha: -Grá,grá, vai chover,o coronel vai cair,teu homem vai assumir e você vai engravidar!Falou tudo e saiu em revoada com destino à velha árvore.Ela foi até seu marido que estava consertando a cerca no fundo do terreno e falou:
 -Home, eu vo fica prenha!
 -Óxente, quem te disse mulé?
 -A ave disse, home!
 -E ocê acredita nessa história, oxi? Tome tento nesse quengo, muié!
 -Óia que ela acerta! Ainda disse que vai chuvê, o coroné vai cai e ocê vai assumi!
 -Assumi o que, óxente!
 -Sei lá, acho que no lugar dele.
 -Fala baixo que tem jagunço pra todo lado. Se eles ouvi, eu to morto!
 -Não fui eu, foi a ave que disse. A ave disse, ára!
 Eles nem perceberam que um moleque brincava ali perto da cerca e ouvindo tudo,  foi correndo contar para o coronel. O latifundiário lhe deu uns trocados e chamou seus capangas:
 -Ozezo! Ocê é meu braço direito!Vá com Zé Homi que não tem medo nem da morrte. Ocê dê cabo daquela ave dus inferrrnos, visste? E ele que cuide do cabra safado que qué meu lugarr!Vai chuvê? Isso num me interessa. Si minhas cisterrna, meus poço e meu açude parrticularr mi dão a água que eu quero e deixa esse povo pricisando de mim, assim, na rédea currta, como tem de ser.Ninguém vai pensá em tomá minha corôa e ficá vivo pra rir de mim!
  Não se questionavam as ordens do coronel, contudo os jagunços saíram apreensivos. Conheciam a fama da ave e se ela disse que ia chover e que haveria um novo rei do sertão, assim seria. As duas feras humanas, pois o coronel só escolhia homens que torturavam e matavam dando risadas, se encaminharam, Zé Homi para a casa do casal e Ozezo para a pedra da ave preta. A meio caminho de cada um, o céu escureceu, de um escuro tão denso que um meteorologista acertaria se o chama-se de cumulonimbus. Em seguida uma chuva torrencial começou e Zé Homi pensou:
 -Arriégua num é que vai chove messmo? Maiss num me avécho não, vô dispachá esste cabra cum chuva e tudo, ochi!
  Engatilhou sua garrucha e a enfiou no cinturão. Desabotoou uma bainha presa à cintura e puxou um punhal cuja lâmina cintilou ao reluzir de um relâmpago. Correu o polegar esquerdo ao longo do  fio e: -Ai! Afiei mutcho essta pesste! Um brotar de sangue avermelhou sua digital que ele levou à boca: - Huum, sangue bom é quando só sai do corrpo dos otro e não do meu e é com esste punhá aqui qui eu vô sangrá aquela bessta humana qui ousô disafia o coroné!
  Ao chegar a dois metros do portão, um raio caiu em cima dele. A carga foi tão forte, que seu corpanzil de dois metros e dez de altura foi reduzido a um metro e meio esturricado. Sua garrucha, punhal e até um soco inglês que seu irmão detento lhe mandou de São Paulo, derreteram até virar um amálgama de metal. O casal protegido dentro de casa, só daria conta do acontecido muito tarde pois a enxurrada já carregava o cadáver carvão para os lados do açude.
  Ozezo, debaixo de chuva, fincando suas botas de couro cru a cada pisada  para não escorregar na lama, deu de cara com a ave que, apesar da tempestade, parecia que esperava por ele. Ele olhou a ave e ela fixou seus olhos vermelhos e fantasmagoricamente brilhantes nos dele, e aquele homem, que já tinha enfrentado soldados sozinho, matado meia dúzia e conseguido escapar para aquelas bandas de longe de qualquer lugar e mudado de nome e de aparência, protegido pelo coronel, sentiu um arrepio gelado na espinha, e não era da chuva. Empunhou a espingarda e antes que pudesse compor a mira com toda aquela água atrapalhando, a ave disse quase que tenebrosa e guturalmente:
-Vai morreeeer! E enquanto a voz da ave negra ecoava, ela de um salto, alçou voo e foi para cima do facínora direto em sua veia jugular. A bicada voraz e certeira prorrompeu numa hemorragia abundante, matando aquele que já tinha morado uma vez em uma gruta e passado fome por trinta dias se escondendo da busca dos soldados armados. Foi vítima de uma simples ave. Enquanto os olhos de Ozezo reviravam ao suspiro final, ao tombar por terra, a água lavava seu sangue e já arrastava seu corpo para terras mais baixas. O pássaro negro, por sua vez, saltou daquele corpo já sentenciado e rumou voo em tempestade para a casa do coronel, que estava ansioso olhando pela janela. A ave pousou num jardim suspenso que ele havia mandado fazer com primor na frente da janela, de altura que ele pudesse visualizar as flores e ao mesmo tempo a entrada gramada para sua casa. A cada relâmpago, as pontas das penas e o o bico, como que retinham fragmentos dos raios, prolongando o reflexo. Mas o que mais impressionava, era que a ave olhava fixamente para ele com suas pupilas cor-de-sangue em brilho vivo, sumindo e surgindo, entre escuridão e clarão, fazendo aquele opressor que só era valente com guarda-costas armados à sua volta, ser tomado de súbito pânico, tendo sua pressão aumentada vertiginosamente, lhe causando um infarto fulminante que o fez cair à frente da janela. Ali acabaram 50 anos de tirânico reinado sertanejo.
 A chuva passou, o casal só soube dos acontecimentos pelo povo dali, que levou o dono daquela rude tapera onde a pobreza também morava, em cima dos ombros para a casa do coronel e depois de toda a história virada e revirada, nem o povo dali, nem o novo coronel desta história, sequer questionaram as previsões porque a sua mulher também engravidara. A nova senhora da casa da fazenda, já bem instalada, deu a luz a uma linda e saudável menina a quem, em homenagem ao pássaro, colocaram o exótico nome de Avedice.
 A ave negra nunca mais foi vista. 

      


 
 






   

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