quinta-feira, 31 de outubro de 2013

VILGOLVINA

 Ali, na Cidade Futebola, o futebol era o assunto mais vivido, comentado e assimilado enfim. Também o nome fora idealizado por Oreco e esse era na verdade o apelido do fundador da cidade que, filho de italianos loucos por futebol, escorregando na língua "portuliana", inventaram a palavra "futebola". Seu nome era Roberto Pavão, sobrenome esse que era italiano e que nem ele comentava ao certo, contudo era o resultado do erro de um escrivão bêbado. Informação pouco valiosa num lugar em que todos se tratavam por apelidos. Oreco, que era naturalmente o prefeito, cuja prefeitura localizava-se na Vila dos Encostos, sim, porque além do futebol, outro assunto bastante abordado era sobre assombrações, encostos ou coisas do gênero. Tinha até o Jabá Fera, um baiano que a arrancava todo o apoio das suas cadeiras dizendo: -"Oxênte! Di incossto num quero nem o nome! Em casa nem incossto nass cadera eu dexo! Ranco tudo messmo!".
 Fazia alguns anos, um jogador havia feito história naquele lugar. Cabeceava tão bem quanto matava a bola no peito, no pé, na coxa, corria como foca com a bola parada na testa; pela esquerda chutava forte de direita; pela direita tinha um chute canhoto muito potente; centro avante, tanto distribuía as jogadas como fazia gols e sem mentira nenhuma, em cinco anos já tinha feito 487 gols, quase cem gols por ano! É, mas tudo o que é bom dura pouco e o "Só Gol", esse era o apelido dele, já tinha ido dessa para melhor, pois num festival de domingo, com uma incrível fome de bola, jogara desde a manhã até o princípio da noite sem parar nem para comer, teve um colapso e: "adios bambino". Todo os planos praticamente concluídos para a ida para o Barcelona foram frustrados. Comentava-se então à boca miúda, que aquela alma de jogador, depois da; an han; deixa eu fazer o sinal da cruz amém; passagem pro céu ou não sei pra onde, já fizera um milagre aqui, outro ali, milagres, é claro, relacionados a resultados de partidas de futebol. Mas peraí, e se duas pessoas pedissem ao ah,ah: "São Só Gol"" para que seu time ganhasse, os times fossem adversários, o jogo se desse entre eles e um dos dois saísse o vitorioso, o que diziam? Bom, diziam que um dos torcedores rezou mais rápido que o outro. Mas e se empatassem? Bem, ai diziam que o "Santo" era tão bom, que queria agradar a todos. Ora, mas isso é conversa de beato à toa, portanto vamos parar com essas pilhérias e voltar ao que interessa. Preciso explicar o porque do apelido Oreco, então veja bem: esse cidadão que era pura tiração de sarro, inclusive fez alguns discípulos, embora existissem muitos outros na cidade com a mesma arte para a comédia de gente a toa, sabem, essa habilidade de procurar em qualquer brecha um motivo para se zombar de alguém? Devo até lembrar que eu, eu mesmo, sou bastante distraído e quando escorrego num verbo ambíguo meu irmão mais velho logo vem com um: Ahn han, ahn han, seguido de uma observação maliciosa e ... mas quem quer saber de mim ou do meu irmão? Você quer saber é da história, pois é, o Oreco adorava Alvarenga e Ranchinho e principalmente a música "Mister Eco" que ele  não parava de cantar; foi ai que um bêbado velho e desdentado que estava no "Bar do Escorrega Lá vai Um" disse assim: -"O quê? Sussu ssseu noomi ééé Oréco?'' Pronto, o apelido nunca mais saiu dele.
 Oreco era tão fanático por futebol que conseguira, no ato da fundação da cidade, criar uma lei priorizando esse esporte, na maneira de tombar uma grande área para campos de jogo. A várzea era ali um universo festivo sem qualquer pretensão profissional, mesmo porque ali, apesar das brincadeiras, trabalhava-se muito.
Imagine você, que em  Futebola e especificamente na Vila dos Encostos, diversas empresas trabalhavam na produção de equipamentos e artefatos para futebol, que eram testados nos campos amadores dali e ganhavam qualidade e respaldo de padrão FIFA. Bolas, caneleiras, meiões, chuteiras, uniformes, redes e até apitos de juiz; pelo amor de Deus, quando deixavam a criançada testar alguns, era uma apitaiada ensurdecedora; todo e qualquer equipamento esportivo, mas só para futebol, ali se produzia, sem falar dos craques que ali eram descobertos por olheiros, onde preciosos talentos, não tão habilidosos quanto o Só Gol, mas nem que por isso tivessem pouca intimidade com a bola, eram levados para os grandes times profissionais, inclusive os da Europa. Dez campos de futebol, numa enorme área tombada pela prefeitura, alimentavam os lazeres futebolísticos do lugar, regados a muita cerveja e churrasco.
 Havia também o irmão do "Só Gol" que também jogava por ali. Só que não era nem sombra do mano craque. Para você ter uma ideia, uma vez de frente pro gol, era só chutar e fazer! Pois ele aparou a bola com a mão para chutar! Quando seu time gritou:"Mão não!"Ele respondeu:"Por que não?"E assim era o "Nem Gol". Não dava para ter outro apelido. Mas ele era tão bonzinho, cortês, educado, cavalheiro, uma santa, quero dizer santo pois não era gay. É o que diziam. Ele era boa pessoa mas, como se diz: "Minha vozinha é tão boa mas não joga nada". O fato é que ele adorava futebol e queria jogar de qualquer jeito. Em memória ao falecido; por favor tire seu boné, sua toca ou chapéu em respeito; seu irmão, ele sempre jogava. Só que ele não sabia regra,  não cabeceava, chutava torto, caia à toa, no gol era um desastre, na linha atrapalhava o time, até que o técnico falou com bondade: Não dá pra você fazer outra coisa? Foi ai que eles o utilizaram como faz tudo: gandula, roupeiro, amaciador de chuteiras...Num certo jogo, o juiz estava chorando. Estavam xingando demais a mãe dele. Nem Gol foi em casa, vestiu as roupas da mãe, se maquiou, calçou saltos, escreveu num cartaz, dependurou no peito as letras grandes e foi desfilando ao redor do campo com esse escrito: "Mãe do juiz". Tudo virou o maior sarro mas pararam de xingar a mãe do juiz.
 Num dado domingo ventava demais, mas o futebol. não podia parar. Os "sem calção" e os "venta suja", espera, eu explico, que ansiedade ô! Uma vez, um jogo, o time Parreira de Uva que tinha sido montado pelo seu "Tiro de Sal" um fazendeiro vinicultor, chegou na hora do jogo com a metade da quantidade de calções; distração do roupeiro que era meio distraído; o time adversário ofereceu os de seu uniforme, tinha de sobra, mas a rivalidade era tanta e só para não dar gosto, metade daquele time jogou de cuecas, acreditem! Já o Futebola; esse levava o nome da cidade; jogando num dia de muito frio, estava com o time gripado que corria um pouco, assoava o nariz na mão e abanava para o ranho cair na grama, quando não limpava no próprio uniforme. Dai não é preciso imaginação para saber o apelido "venta suja". Mas, como eu dizia, o vento era tão forte que as árvores dançavam, os jogadores firmavam o pé para que não perdessem o equilíbrio, então aconteceu: o goleiro do venta suja fez uma defesa espetacular, agarrando um tiro do centro avante dos sem calção e embora a ventania soprasse muito contra a sua meta, esse arqueiro então, segurando a bola com as duas mãos soltou-a e sem que ela caísse na área, deu um chute daqueles em que o corpo é arcado, o pé esquerdo sai do chão e como que numa espécie de bicicleta pra frente,chuta com vontade e foi o que ele fez, bateu com o peito do pé direito na redonda, na intenção nervosa de coloca-la em jogo lá no ataque. Bem, coisas incríveis acontecem e essa bola subiu, a força do vento a foi rodopiando lá no alto e esse mesmo vento a trouxe de volta veloz para o centro do gol de onde fora chutada.Goooolll!!! Com muita gargalhada!
 Oreco, além de cuidar da prefeitura, não perdia a oportunidade de narrar uma partida importante pois adorava discursos e fazia questão de narrar às vezes, já que por obrigações tantas e pela idade, não jogava mais, a não ser no festival anual dos veteranos. Acontece que sua filha caçula acabara de nascer, fato raro para um homem daquela idade e ele, como eu já disse, fanático por futebol, trocara o gosto de registrar o nascimento no cartório para narrar aquele jogo. Oreco então, pelo celular conversava com o irmão:
 -Que nome você vai dar pra sua filha, Oreco? Já estou no cartório.
 -O nome é..... e o o celular falhava.
 -Fala Oreco, que nome você quer?
 -A.....e falhou de novo. Nesse ínterim, Oreco viu aquele gol feito pelo vento e começou a gritar entusiasmado:
 -Nossa, que gol! Eu vi, eu vi. Se eu contar ninguém acredita! Você viu Zóio Gordo? Disse falando pro amigo comentarista ao lado.Nesse momento o celular que ele não desligara, sintonizou na hora exata:
 -Viu u gol?
 -Vi na... hora, respondeu Zóio Gordo, mas quando o mesmo disse "hora", o celular falhou de novo.
 O irmão de Oreco que já estava de saco cheio por não ter ido ver os sem calção jogar, seu time do coração, juntou tudo e pensando que era a resposta esperada, ditou o nome ao escrivão. Foi então que o fanatismo futebolístico unido à má vontade de um irmão que se julgara injustiçado, geraram um nome exótico à mais nova futebolense: Vilgolvina.

     

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